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29 junho 2012

INJÚRIA E DIFAMAÇÃO NO AMBIENTE DE TRABALHO




O blog publica às sextas-feiras decisões da Primeira Turma do Colegiado Recursal dos Juizados Especiais de Vitória, no biênio 2004/2006, período em que tive a honra de integrar aquele dinâmico sodalício. Não há compromisso de publicação da integralidade dos julgados nem com a identificação das partes, vez que interessa apenas revelar alguns temas interessantes que são debatidos no cotidiano dos Juizados Especiais, os quais inegavelmente deram uma nova dinâmica ao judiciário brasileiro. E de tal sorte que cada vez mais são ampliadas suas competências. Pelo andar da carruagem, em breve o que era especial passará a ser comum, o que faz alguns preverem em futuro próximo o sepultamento das varas cíveis comuns, onde ou se consegue um provimento cautelar ou antecipatório ou não se vê resultado concreto em pelo menos longos anos de litígio.

Hoje o caso tratado é de natureza criminal, abordando ação penal privada relativa aos crimes de injúria e difamação, como segue:

                   ACÓRDÃO

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. AÇÃO PENAL PRIVADA.  SENTENÇA ABSOLUTÓRIA QUANTO AO CRIME DE DIFAMAÇÃO E EXTINTIVA DA PUNIBILIDADE QUANTO AO CRIME DE INJÚRIA COM BASE NA FIGURA DA RETORSÃO IMEDIATA. REFORMA PARCIAL.
1.- NÃO CARACTERIZAÇÃO DO CRIME DE DIFAMAÇÃO, O QUAL EXIGE A IMPUTAÇÃO DE FATO PRECISO E DETERMINADO, NÃO SENDO SUFICIENTE A ATRIBUIÇÃO DE MEROS VÍCIOS, DEFEITOS OU JUÍZO DE VALOR DEPRECIATIVO. ABSOLUÇÃO MANTIDA.
2.- IMPOSSIBILIDADE DE ADMISSÃO DO INSTITUTO DA RETORSÃO IMEDIATA VISTO QUE AQUELE QUE INICIA OS IMPROPÉRIOS NÃO PODE ALEGAR RETORSÃO. CONDENAÇÃO PELO CRIME DE INJÚRIA.
3.-RECURSO PROVIDO PARCIALMENTE.
Vistos, relatados e discutidos estes autos, ACORDAM os Juízes da Primeira Turma Recursal do Colegiado Recursal dos Juizados Especiais de Vitória-ES, à unanimidade, dar provimento parcial ao recurso, nos termos do voto do Relator, que deste passa a fazer parte integrante.
                       Vitória, ES,       de junho de 2005.

 R E L A T Ó R I O
ICPTN, devidamente qualificada e representada por sua ilustrada advogada ofereceu queixa-crime em desfavor de CT AS, também qualificado, alegando ter sido vítima de ofensas morais e agressões verbais por parte do querelado, requerendo sua condenação nas penas dos artigos 139(difamação) e 140(injúria), ambos do Código Penal.
Regularmente instruído o feito sobreveio a r.sentença de fls. 71/77 que julgou improcedente o pedido de condenação contido na presente queixa crime, absolvendo o querelado do crime de difamação, por não constituir o fato a infração penal atribuída na peça de ingresso e quanto ao crime de injuria, concedeu o perdão judicial ao querelado, em face do artigo 140,§ 1º,II, do Código Penal e declarou extinta a punibilidade, consoante o disposto no art. 107, inc.IX do mesmo diploma legal.
Irresignada, a querelante interpôs “recurso inominado” a fls. 92, aduzindo que o magistrado sentenciante confundiu difamação com calúnia, discorreu sobre as provas produzidas e rebateu a tese de retorsão quanto ao crime de injúria, requerendo a anulação da sentença impugnada para que outra decisão seja proferida no sentido da condenação do querelado nos termos pleiteados na inicial.
Contra-razões pelo querelado a fls. 102/106, alegando que as partes se indispuseram no ambiente de trabalho, havendo retorsão por parte do recorrido, rogando seja julgado improcedente o presente recurso de apelação, mantendo a decisão “monocromática” (sic) para absolver o apelado de todas as acusações que lhe foram impetradas(sic).
O Ministério Público em peça de fls. 109/112, ratificando a manifestação anterior de fls. 66/69, opinou no sentido do provimento do recurso, de sorte que a r.sentença recorrida seja reformada, para condenar o apelado nas penas dos arts. 139 e 140 do Código Penal, como corolário da melhor aplicação da lei e da justiça.
Neste Colegiado, através do abalizado parecer de fls. 116/119, o douto órgão ministerial, encampando a manifestação de seu colega de primeiro grau de jurisdição, conclui pela recepção do recurso e seu provimento para reformar a decisão atacada, pois proferida com desacerto, fazendo com isso a justiça que o caso requer.
É o relatório.

                        V O T O

Entendendo satisfeitos os pressupostos de admissibilidade, sobremodo diante da certidão de fls. 101, conheço do recurso.

Em razões recursais, alega a apelante, quanto ao delito de difamação, que o julgador de primeiro grau de jurisdição o confundiu com o crime de calúnia ao afirmar em sentença, às fls. 73/74, que para a tipificação daquele é necessária a imputação pelo autor da infração de fato preciso ou determinado capaz de atingir a honra do ofendido.

Tal alegação, contudo, não procede.

É questão pacíficada na doutrina e jurisprudência pátria que, para a configuração do crime previsto no artigo 139 do Código Penal, o fato imputado à vítima deve ser concreto, determinado e atacar a honra objetiva do ofendido, pois se a imputação for genérica, imprecisa, não constitui difamação.

Nesse sentido, Fernando Capez exemplifica:


“Assim, se divulgo que Carlos traiu seu partido político ao filiar-se a partido oposicionista, há no caso difamação, diante da descrição de um fato concreto, determinado. No entanto, se divulgo genericamente que Carlos é um traidor, sem fazer menção a nenhum fato concreto, demonstrando apenas a minha opinião pessoal, haverá na hipótese o crime de injúria, diante da atribuição genérica de uma qualidade negativa.”[1]

Também ensina Luiz Regis Prado:

“Os fatos genericamente enunciados, os de realização provável e os julgamentos sobre qualidades atribuídas à vítima não configuram difamação, mas injúria. A difamação consiste no relato de fato preciso, que, pelas circunstâncias em que é enunciado se torne digno de crédito. (...) A difamação se distingue da injúria por consistir na imputação de acontecimento ou de conduta concreta, e não na expressão de simples juízo de valor depreciativo.”[2]


A jurisprudência apóia-se também nesse entendimento, como se percebe no seguinte julgado:


CRIMINAL. HC. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. CALÚNIA. INEXISTÊNCIA DE ELEMENTO SUBJETIVO A RESPEITO DA FALSIDADE DAS AFIRMAÇÕES. DIFAMAÇÃO. ATRIBUIÇÃO DE FATOS GENÉRICOS E INDETERMINADOS. ATIPICIDADE DAS CONDUTAS. ORDEM CONCEDIDA.

Para a caracterização do delito de calúnia é necessária a configuração do elemento subjetivo, qual seja, a vontade livre e consciente de estar imputando, falsamente, a outrem, fato definido como crime. Se evidenciado, nos autos, que o paciente não tinha condições de avaliar a veracidade das afirmações veiculadas no Jornal do qual era radialista, pois somente teria repassado notícias obtidas pela repórter, não há que se falar em crime de calúnia. Se o paciente limitou-se a proferir, de forma genérica, expressões desrespeitosas em relação à vítima, sem, contudo, especificar as imputações, não se configura o delito de difamação, pois, para tanto, é necessário que o fato ofensivo seja preciso, concreto e determinado. Ordem concedida para, cassando-se o acórdão recorrido, determinar-se o trancamento da ação penal instaurada contra o paciente” (grifo nosso).

(STJ, 5ª T., HC 16634-SP , Rel. Gilson Dipp, DJU 22.04.2002, p. 220).

Dessa forma, embora as expressões “louca”, “doida”, “histérica”, “minha cachorrinha”, “uma vez cachorra, sempre cachorra” e que “estava precisando de um macho” (fl. 20), proferidas pelo apelado Cláudio, possuam potencial ofensivo à reputação (honra objetiva) da vítima, visto que chegaram ao conhecimento de terceiros não constituem atribuição de fato preciso e determinado, mas sim de meros vícios, defeitos ou juízo de valor depreciativo e por isso tal conduta não subsume-se ao crime de difamação previsto no art. 139, CPB, razão pela pelo qual este delito fica desde já excluído.

Inicio, então, a análise referente ao crime de injúria.

Alega a apelante que há 5 anos vem sendo atormentada pelo apelado, sendo que no dia 12/05/2003 foi surpreendida com agressões verbais e gestos intimidadores, quando foi chamada de “doida” e “estérica” (sic)e que “precisava de um homem para resolver o seu problema”. Afirma também que quando se dirige ao banheiro do ente federal, onde ambos trabalham, o apelado tem o hábito de ficar no banheiro ao lado, a chamando de “minha cachorrinha” e uma vez cachorra, sempre cachorra”. Além disso, a apelante diz sofrer ofensas por meio de ligações telefônicas e declara ter o apelado, no dia 04/08/2003, tentado esfregar em seu rosto cópia de documento através do qual solicitava gratificação pelas funções por ela exercidas.

Tais afirmações foram devidamente comprovadas através de ampla prova produzida nos autos, como se percebe nos depoimentos a seguir:

A testemunha de fls. 22/23, declarou:

“...que presenciou o querelado proferir ofensas verbais contra a querelante, tais como ‘estérica’, afirmando que a querelante estava precisando de um macho para resolver o problema da mesma, que a querelante é uma louca; que as ofensas se repetiram ao longo de um ano; que o querelado possui uma personalidade muito estranha e agressiva, tendo agredido outros colegas, anteriormente a este fato; que já presenciou o querelado perseguir a querelante por várias vezes; que a depoente viu o querelado se esconder no banheiro e aguardar a querelante passar, tendo a chamado de ‘minha cachorra’, ‘minha cachorrinha’, ‘ordinária’; que presenciou o querelado acabar de esfregar o papel que continha uma solicitação de gratificação para a querelante no nariz da mesma; que tem conhecimento que o querelado segue a querelante nas ruas, na saída do serviço, quando a mesma está a caminho de casa (...)que já ouviu o querelado assobiar ou cantar plagiando o hino do flamengo xingando a vítima assim: ‘uma vez cachorra, sempre cachorra, cachorra sempre eis de ser’ (...) que não cessaram as perturbações e ofensas dirigidas à querelante pelo querelado...” (Sublinhei).

Outra testemunha, ouvida à fl. 24, afirmou:

“...que ato contínuo o querelado irrogou  ofensas verbais à querelante, no sentido de que a mesma estaria necessitando de arranjar um homem, que estava doida, maluca, estérica (...) que tomou conhecimento no próprio setor de trabalho que o querelado era ‘a fim’ da querelante (...) que já presenciou várias vezes o querelado ficar espiando a querelante no setor de trabalho dos mesmos (...) que ouviu dizer que uma funcionária de nome Andréia também foi assediada pelo querelado(...)que sabe informar que os familiares da querelante também estão sofrendo ofensas verbais feitas através de ligações telefônicas pelo querelado...”

No depoimento de fl. 25, ficou registrado:

que ouviu o querelado agredir verbalmente a querelante chamando-a de histérica, safada, que o problema dela era falta de homem; que ouviu o barulho de documentos batendo de encontro a uma mesa; que presenciou quando a funcionária de nome Maria das Graças adentrou a sala onde encontravam-se querelado e querelante, deixando a porta entreaberta possibilitando ao depoente de ver uma tentativa de agressão física por parte do querelado em relação à querelante, agressão esta, que não se concretizou em razão da interferência da referida funcionária de nome Graça...”

Extrai-se também do testemunho de 26:

“...que presenciou o querelado ofender moralmente a querelante, bem como fazer menção de agredi-la; que tal agressão não se concretizou em vista da interferência de uma funcionária de nome Graça...”

Por fim, colhe-se à fl. 45, o seguinte:

“...que presenciou quando o querelado adentrou a sala da querelante carregando uma pilha de processos e usando de ignorância, os jogou em cima da mesa da mesma (...) que presenciou o querelado tentar investir contra a querelante, fato que não aconteceu em razão da interferência da funcionária de nome Graça; que disse, ainda, o querelado que o problema da querelante era falta de homem; que o depoente ficou bastante chocado com a cena por ele presenciada...”

De outro lado, as testemunhas arroladas pela defesa, ouvidas às fls. 46, 47 e 48, não presenciaram os fatos, sendo que RBS (fl. 46) e DTS (fl.48) abonaram a conduta do apelado e RS (fl.47) disse que “não sabe se o querelado tem um bom comportamento junto aos colegas”.

Quando interrogado, à fl. 49, o apelado CTAS declarou:

“...que dirigiu algumas expressões à querelante, consideradas agressões verbais (...) que o querelado indagou à querelante se a mesma estava ficando histérica (...) que ato contínuo querelado disse que a mesma estava precisando de um homem (...) que apenas brincava e elogiava a querelante mas nunca teve qualquer outro interesse pela mesma; que a querelante entendia como sendo assédio o comportamento do querelado (...) que não fez o comentário de que a mesma estava precisando de homem com intuito de ofendê-la pejorativamente...”


Desse modo, tem-se cristalinamente na prova testemunhal carreada nos presentes autos que o apelado agiu com manifesta intenção de atacar a honra da apelante Isabel, proferindo, contra esta, expressões ultrajantes, capazes de causar grande ofensa à sua dignidade.

Extrai-se da sentença recorrida a admissão da figura da “retorsão imediata” (art.140, §1º, II, CP), o que implicou no perdão judicial do apelado quanto ao crime de injúria, com fundamento no fato de que a vítima, após ser ofendida com expressões ultrajantes, chamou o apelante de bêbado e alcoólatra, o que foi ratificado pelas testemunhas do episódio.

A figura da retorsão é definida como “a injúria como resposta à injúria proferida pela vítima. Aquele que é injuriado em primeiro lugar pode ser isentado de pena desde que pratique o crime imediatamente após ter sido ofendido.”[3]

Ora, nesse caso a vítima apenas reagiu à ofensa iniciada pelo apelado Cláudio, cujo comportamento ilícito e antijurídico não se adequa a tal instituto.

Nesse diapasão também caminha a jurisprudência: ”Quem toma a iniciativa dos vitupérios não pode, evidentemente, invocar retorsão de injúrias.” (JTACrSP 59/235).

Em relação à reação da vítima, proferindo contra seu ofensor as expressões “bêbado” e “alcoólatra”, constitui caso de legítima defesa, conforme ensinamento de Capez:

“O que pode acontecer é a hipótese em que o indivíduo, para evitar reiteração de injúrias, agride o injuriador, constituindo essa agressão legítima defesa. Perceba-se, no entanto, que tal caso já não pode ser enquadrado como retorsão.”[4]

Em sede de contra razões, a defesa alega que houve retorsão imediata devido ao fato de a apelante, não possuindo poderes hierárquicos para tanto, ter determinado ao apelado a realização de tarefas a ela conferidas. Entretanto, é requisito do instituto da retorsão que a provocação consista em crime de injúria, o que não ocorreu.

Aduz também a defesa que “a apelante provocou o fato, determinando cumprimento de atribuições que na verdade eram única e exclusiva de seu setor, portanto de sua competência”. Não se trata, tal situação, da hipótese prevista no art. 140, § 1º, inc. I, do Código Penal. Nesse caso, a provocação deve ser reprovável, censurável, injusta, ocasião em que a injúria proferida é conseqüência direta da ira que se apodera do agente dada a provocação sofrida.

Não foi o que ocorreu no caso em tela, eis que agressões foram derramadas pelo injuriador em diversas ocasiões e não possuem relação direta com a alegação feita. Ademais, as agressões continuam a ser exaradas pelo ofensor, tendo o mesmo sido punido administrativamente com pena de suspensão de suas atividades pelo período de 15 dias, conforme documento à fl. 99.

Assim, restou configurado o delito de injúria, previsto no art. 140 do Código Penal, pelo qual condeno o apelado C TAS.

Passo, então, a dosar-lhe a pena.

Analisando as circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal tem-se a culpabilidade representada pelo dolo (animus infamandi ou injuriandi), em grau intenso;  acusado primário e de bons antecedentes; conduta social desfavorável, pelos relatos da existência de outros atritos inclusive agressões a outra pessoa no mesmo ambiente de trabalho; não há registro de sua personalidade; os motivos e as circunstâncias do crime não são favoráveis ao acusado que se aproveitou do inevitável contato com a vítima em virtude de ambos trabalharem na mesma autarquia federal para perseguí-la e atormentá-la com ofensas à sua dignidade; as conseqüências do delito foram graves na medida em que culminaram por afetar seus familiares; e o comportamento da vítima não favoreceu ao crime pois a mesma passou a não mais ir ao banheiro ou sair do trabalho sem a companhia de outra pessoa a fim de evitar outras agressões.

Por tais considerações fixo a pena base em 3 (três) meses de detenção. Fixo esta como pena provisória por entender não existirem circunstâncias agravantes e atenuantes a serem consideradas.

Reconheço a causa de aumento de pena disposta no art. 141, III, do Código Penal, majorando a pena provisória de 3 (três) meses de detenção em 1/3 (um terço),pelo fato de as ofensas terem sido proferidas pelo injuriador em seu próprio ambiente de trabalho e na presença de várias pessoas, sendo estas MGCM, ECS, ENL, JMV e ERM. Entendo não existirem causas de diminuição de pena a serem sopesadas.

Fixo, assim, a pena definitiva em 4 (quatro) meses de detenção.

Usando o permissivo contido no art.44, § 2º, do Código Penal, substituo a pena privativa de liberdade aplicada em pena restritiva de direitos, na modalidade de prestação pecuniária, correspondente a quatro salários mínimos (art.45,§1º, do C.P.) consistente na entrega quinzenal de cestas básicas que somem a importância de R$ 150,00 (cento e cinqüenta reais), a entidade com destinação social devidamente cadastrada no juízo competente para a execução.

Após o trânsito em julgado, lance-se o nome do recorrido-apenado no rol dos culpados e oficie-se ao órgão oficial de identificação criminal para os fins de direito.

Face ao exposto e considerando as manifestações dos órgãos do Ministério Público que atuaram no feito, dou provimento parcial ao recurso de forma a absolver o apelado quanto ao crime de difamação e condená-lo nas penas do art. 140, crime de injúria, nos termos acima referidos.

É como voto.

Referências:

[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Especial. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 236.v.2.
[2] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Especial. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p.238. v.2.
[3]MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal: Parte Especial. 21ª.ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.168. v.2.
[4] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Especial. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 248.v.2.

21 junho 2012

LAMPIÃO E O FOGO DA MARANDUBA

 

Archimedes Marques 
Delegado de Policia no Estado de Sergipe. Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Segurança Pública pela Universidade Federal de Sergipe 


O ferrenho combate denominado “Fogo da Maranduba”, ocorreu no dia 9 de janeiro de 1932, na Fazenda Maranduba, município de Poço Redondo, aqui no nosso querido Estado de Sergipe, cujo intenso e sangrento tiroteio é considerado um dos três maiores enfrentamentos entre cangaceiros e policiais volantes na história do cangaço. Dizem os pesquisadores e historiadores que esse combate só é comparado à sangrenta batalha de Serra Grande, em Pernambuco e ao não menos cruento embate de Serrote Preto, nas Alagoas. As baixas em Maranduba foram muitas e das polícias volantes comandadas pelos audazes combatentes perseguidores Tenente Manuel Neto e  Capitão Liberato, contabilizaram-se oito mortos e diversos feridos, enquanto que, por parte dos perseguidos cangaceiros somente três mortos e um ferido.

Sem sombra de dúvida, os três combates acima citados se notabilizaram por seus aspectos grandiosos e pela engenhosidade de um líder inconteste, o famigerado estrategista Lampião. O famoso bandoleiro à frente de seus cangaceiros, sempre em inferioridade numérica viria a alcançar essas três vitórias fragorosas, imprimindo vergonha às hostes governamentais, provando assim que as Forças policiais volantes agiam mais com a emoção transpondo a própria razão, que na verdade não passavam de atrapalhados soldados de guerra e apesar das diversas batalhas desenvolvidas com os cangaceiros em aproximadamente vinte anos de atuação, nunca conseguiram atingir os seus objetivos, a não ser em 28 de julho de 1938, mesmo assim por conta da traição do coiteiro Pedro de Cândido – torturado ou não – que levou o então Tenente João Bezerra da Força policial alagoana até a grota do Angico, em Sergipe, massacrando o bando de surpresa em uma madrugada e pondo fim à carreira criminosa do maior dos cangaceiros das terras nordestinas.

Adentrando na questão dos personagens policiais militares que participaram do “Fogo da Maranduba”, bem verdade é que o Tenente Zé Rufino da Força policial baiana, o “grande caçador de cangaceiros”, se fez presente nessa refrega, mas não em comando e sim comandado pelo Tenente do Exército Brasileiro, Liberato de Carvalho. Das baixas fatais da Força pública, quatro pertenciam à tropa do Capitão Liberato de Carvalho, da Bahia, e quatro da tropa do bravo nazareno Tenente Manoel Neto, de Pernambuco. Do pelotão sob o comando do Capitão Liberato de Carvalho sucumbiram Elias Marques, João de Anízia, Pedrinho de Paripiranga e Manoel Ventura. De Nazaré, ou seja, dos nazarenos comandados por Manoel Neto, morreram no combate Hercílio de Souza Nogueira e seu irmão Adalgiso de Souza Nogueira, João Cavalcanti de Albuquerque e Antônio Benedito da Silva.

Da batalha que teve início por volta do meio dia e se estendeu até o por do sol, consta que ali estavam os cangaceiros se preparando para comer, para depois nas pias existentes, ou seja, nas águas empoçadas entre as pedras, abastecerem os seus cantis e seguirem sertão adentro nas suas tristes sinas de crimes de todos os tipos e eterna fuga. Naquele dia, pensando surpreender o bando, os policiais volantes no escaldante sol, se aproximaram pela caatinga da Fazenda Maranduba, mas terminaram cometendo os mesmos erros de combates anteriores. Contando como vitória certa os policiais subestimaram os adversários, principalmente por se encontrarem em supremacia numérica de homens que era de aproximadamente três vezes mais, daí acabaram envolvidos por várias linhas de tiros engenhosamente armadas por Lampião e seus comandados.

Desse sangrento combate, em rápida análise, qualquer um pode imaginar, que a despeito das batalhas de Serra Grande e Serrote Preto, mais uma vez, os comandantes das Forças policiais presentes em Maranduba, acreditaram que a superioridade que detinham em homens e armas seria um fator de desequilíbrio no embate, dando provas de que a inteligência que deveria haver inerente aos verdadeiros líderes sempre ficou abaixo dos arroubos das suas valentias. A raiva, a fúria e a arrogância foram confrontadas com o sangue-frio, a paciência e a inteligência de Lampião.

Assim, cautelosamente Lampião, como grande estrategista de guerrilhas que era, postou seus homens entrincheirados em sete Umbuzeiros ali existentes, de modo que os soldados ao entrarem arrojadamente no campo de fogo, ficaram cercados, encurralados, ou seja, em fogo cruzado, feito baratas tontas, alvos fáceis dos cangaceiros.

Ressalta-se que nesta batalha, para a importância na história das lutas sociais do Nordeste, outro ponto há de ser ressaltado, ou seja, referente à participação efetiva dos aguerridos e temíveis nazarenos, os homens de Nazaré, uma Força policial pernambucana dedicada em tempo integral na  caça a Lampião e seu bando, corajosos policiais lendários dos sertões nordestinos, famosos pela persistência de não desistirem nunca do seu objetivo, destemidos cabras-machos que andaram nos rastros dos cangaceiros por cerca de vinte anos.


Em recente visita ao cenário da batalha notei que pouco se conservou. A casa sede da Fazenda Maranduba toda ruiu, a vegetação típica da caatinga da época virou uma grande roça de palma para alimentar o gado, poucas pedras, as pias secas, apenas três dos enigmáticos Umbuzeiros ainda persistem em viver, além da Cruz que marca o local do sepultamento dos policiais, testemunham contra o tempo, aquela que foi uma das mais significativas vitórias de Virgulino Lampião. 



Artigo enviado pelo Autor.

15 junho 2012

FINANCIAMENTO BANCÁRIO E DESCONTO NO PAGAMENTO ANTECIPADO



O blog publica às sextas-feiras decisões da Primeira Turma do Colegiado Recursal dos Juizados Especiais de Vitória, no biênio 2004/2006, período em que tive a honra de integrar aquele dinâmico sodalício. Não há compromisso de publicação da integralidade dos julgados nem com a identificação das partes, vez que interessa apenas revelar alguns temas interessantes que são debatidos no cotidiano dos Juizados Especiais, os quais inegavelmente deram uma nova dinâmica ao judiciário brasileiro. E de tal sorte que cada vez mais são ampliadas suas competências. Pelo andar da carruagem, em breve o que era especial passará a ser comum, o que faz alguns preverem em futuro próximo o sepultamento das varas cíveis comuns, onde ou se consegue um provimento cautelar ou antecipatório ou não se vê resultado concreto em pelo menos longos anos de litígio.

Hoje o caso tratado refere-se ao desconto decorrente do pagamento antecipado de contrato de financiamento bancário, como segue:

 EMENTA: RECURSO INOMINADO.FINANCIAMENTO BANCÁRIO.

1.-PRELIMINAR DE CARÊNCIA DE AÇÃO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR REJEITADA, VEZ QUE O PEDIDO ATENDE AOS REQUISITOS ESSENCIAIS, BEM COMO O PROVIMENTO JUDICIAL OBSERVOU O PRAZO PRESCRICIONAL LEGAL.
2.O MUTUÁRIO DE FINANCIAMENTO BANCÁRIO FAZ JUS A DESCONTO NO PAGAMENTO ANTECIPADO DE PRESTAÇÕES, A TEOR DO DISPOSTO NO ART. 52 DO CDC E ART. 7º DA RESOLUÇÃO Nº 2878 DO BANCO CENTRAL DO BRASIL, AINDA QUE NÃO PREVISTO EM CONTRATO. 
3.- RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos, ACORDAM os Juízes da Primeira Turma Recursal do Colegiado Recursal dos Juizados Especiais, à unanimidade, conhecer do recurso para rejeitar a preliminar argüida e, no mérito, negar-lhe provimento, nos termos do voto do Relator, que deste passa a fazer parte integrante.
             Vitória, ES,       de  setembro de 2005.


RELATÓRIO
O autor ajustou financiamento de um veículo com o Banco recorrente e, tendo quitado integralmente as parcelas restantes e não obtendo o desconto devido, requereu a devolução a que alega fazer jus no valor de R$ 1.721,72 devidamente corrigidos.
A r. sentença de fls. 35/36 julgou procedente, em parte, o pedido contido na exordial. Assim, condenou o réu ao pagamento da importância de R$ 1.563,72, referente ao pedido de restituição em razão do deságio pelo pagamento antecipado. Contudo, em relação à restituição da taxa no importe de R$ 149,00, não mereceu prosperar a pretensão autoral.
Inconformado, o banco-requerido interpôs recurso de fls. 41/54, pugnando pela extinção do processo sem julgamento do mérito ou a reforma da sentença, uma vez que perfeitamente válidas as obrigações contratuais firmadas entre as partes, sob pena de locupletamento indevido do recorrido, como medida de justiça.
Em contra-razões de fls. 57/59 o recorrido pleiteou seja rejeitado o recurso, negando-se-lhe provimento, em todos os seus termos, por ser de inteira e merecida justiça.
É o relatório.
    
                            *

                   V O T O
        
Considerando presentes os pressupostos de admissibilidade, especialmente diante da certidão de fls 41, conheço do recurso.
                            *
PRELIMINAR DE CARÊNCIA DE AÇÃO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR.

O recorrente alega a carência de ação por falta de interesse de agir, eis que não se justifica, após expirado o prazo contratual, a revisão das cláusulas contratuais e o valor supostamente pago a maior seja devolvido ao autor.
Entretanto, verifica-se a total inconsistência das alegações.

No caso em exame, evidente se torna o interesse de agir do recorrido, bem como a necessidade de buscar seu direito mediante a intervenção do Estado-Juiz, como forma civilizada e democrática para dirimir a controvérsia, vez que a recorrente se nega a reconhecer o direito por ele invocado de restituição do valor pago a mais em razão da quitação antecipada do financiamento do automóvel.

A inércia do autor durante a vigência do contrato não o impede de questionar as cláusulas que entende abusivas, bem como fazer valeu seu direito, desde que respeitado o prazo prescricional legal.

Assim sendo, rejeito a preliminar argüida.
                       
                        *
                     M É R I T O


Analisando os autos, os elementos e os documentos acostados, constato que o banco recorrente se limita a dizer que procedeu aos descontos legais sem, contudo, infirmar os cálculos realizados pelo PROCON.

O recorrente em momento algum diz que tais cálculos realizados pelo PROCON estão errados, bem como não justificou a cobrança realizada, limitando-se pura e simplesmente em afirmar que procedeu aos descontos de forma regular, ressaltando a existência do vínculo jurídico entre as partes.

Assevera o recorrido que pagou a importância de R$ 3.790,00 quando deveria pagar R$ 3.158,97, de acordo com os cálculos apresentados a fls. 06. Ora, razão assiste ao autor, pois, tendo antecipado o pagamento das prestações, evidente que o banco não poderia deixar de proceder ao desconto, sob pena de incorrer em enriquecimento sem causa, o que é vedado pelo ordenamento jurídico.

Daí a coerência de considerar-se correto o cálculo elaborado pelo PROCON, com a consequente devolução, em dobro, da importância paga a maior, uma vez que em momento algum houve qualquer justificativa por parte do recorrente acerca do valor cobrado a mais, de acordo com art. 52, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe:


Art. 52 do CDC – No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre:

§ 2º - É assegurada ao consumidor a liquidação antecipada do débito, total ou parcialmente, mediante redução proporcional dos juros e demais acréscimos.


Por outro lado, ao cobrar quantia indevida, cumpre-lhe restituir em dobro, conforme dispõe o parágrafo único do art. 42 do CDC:


Art. 42 do CDC – Na cobrança de débitos o consumidor não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Parágrafo único – O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

Por esses fundamentos, nego provimento ao recurso, condenando o recorrente no pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, estes fixados em 15% (quinze por cento) sobre o valor da condenação, na conformidade disposto no artigo 55, caput, segundaparte, da Lei nº 9.099/1995.
É como voto.

06 junho 2012

OS DIFERENTES TIPOS DE FATOS NO PROCESSO CIVIL




MARCO MEMES
Advogado. Pós-Graduado em Direito Tributário pela UNIDERP/LFG, Pós-Graduando em Direito Imobiliária pela Escola Superior de Administração, Direito e Economia

RESUMO: Tarefa inusitada no âmbito do processo judicial é a tentativa de classificação dos mais variados tipos de fatos que são afirmados pelas partes em suas versões para deslindar a contenda. Sem delimitar os tipos de fatos e suas respectivas características, a legislação nos dá apenas pistas de qual posição devemos tomar frente a afirmações fáticas no decorrer do processo. E a importância dessas afirmações se faz presente quando percebemos que um simples fato afirmado pode representar muito mais do que aquilo que aparenta.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Probatório. Fatos Controvertidos. Fatos Relevantes. Fatos Determinados. Fatos Incontroversos. Fatos Confessados. Fatos Notórios.
1 Prólogo
Um homem não toma as decisões que lhe aparecem durante sua vida sem confrontar as variáveis existentes, pois necessita se convencer do resultado mais coerente com o exame das circunstâncias apresentadas. Através de seus princípios, essência e instinto, o homem age pelas leis naturais em busca da verdade ou, no mínimo, para aproximar-se dela.
No processo jurisdicional não é diferente. As partes, nesse contexto, apresentam-se ao órgão de justiça oferecendo cada qual a sua versão para os fatos, geralmente antagônicas, uma em relação à outra. Enquanto isso, o juiz tem a missão de buscar o sentimento da "verdade", e convencer-se de que determinada versão é a mais aproximada dos fatos efetivamente ocorridos fora do processo.
É neste ponto que reside a importância das provas no processo jurisdicional. Pois para o juiz não bastam meras afirmações de fatos, mas sim a sua demonstração de existência ou inexistência mediante os meios de provas permitidos na ordem jurídica pátria. É no preciso exame das provas coligadas aos autos que o julgador poderá chegar - ou, ao menos, aproximar-se - da "verdade dos fatos", tão necessária à justiça buscada pela sociedade. Não é por outro motivo que "a arte do processo não é essencialmente outra coisa senão a arte de administrar as provas"(1).
Prova, portanto, é a somatória dos meios produzidos e aptos a demonstrar e convencer o espírito do julgador em um processo judicial(2), tendenciosa à parte que a realize. Muito se discute na doutrina se o objeto da prova são os fatos ou simplesmente as afirmações de fatos. Para Cândido R. Dinamarco:
"Provar é demonstrar que uma alegação é boa, correta e portanto condizente com a verdade. O fato existe ou inexiste, aconteceu ou não aconteceu, sendo portanto insuscetível dessas adjetivações ou qualificações. As alegações, sim, é que podem ser verazes ou mentirosas - e daí a pertinência de prová-las, ou seja, demonstrar que são boas e verazes."(3)
Mostra-se mais correto afirmar que o objeto da prova são as versões trazidas pelas partes e que pretendem demonstrar serem verdadeiras e culminantes para uma decisão judicial favorável. O que se provam não são os fatos, mas sim as afirmações que possam referir a fatos.(4)Isto quer dizer que mesmo fatos que estão dispensados de provas, como, por exemplo, os fatos notórios, são importantes para o convencimento judicial. Só porque prescindem de prova, não lhes é retirado o caráter de poder influenciar na decisão judicial.(5)
O estudo dos fatos no contexto do direito probatório pode revelar confusões atualmente praticadas pelos usuários do Direito, e que às vezes pode nos passar despercebidas. Muitos destes "tipos de fatos" não estão delimitados na legislação, tampouco tem seus requisitos insculpidos, tornando-se obscuros e até pouco utilizados, quando, em verdade, deveriam ser mais aprofundados e estudados, até mesmo porque a capacidade do juiz de julgar vai muito além das hipóteses previstas em lei. Neste sentido, sem a pretensão de esgotar o tema no presente artigo, necessário estabelecer as distinções entre os diversos tipos de fatos oportunos à matéria processual civil.
2 Os "Fatos"
2.1 Fatos Controvertidos
São os fatos concretos da prova. Quando uma parte afirma um fato e este é negado pela parte adversa, ou não admitido, fica determinada a necessidade de prová-lo através dos meios autorizados por lei. A menos que se exclua por outras razões, como se verá a seguir, os fatos sobre os quais paira negação da parte contrária (ou ao menos o silêncio, quando esta não tinha o ônus de se manifestar), são considerados controvertidos, e, como consequência, sobre eles deve recair a prova.
Faz-se mister salientar que o silêncio da parte não retira o caráter de controvérsia de um fato, tampouco legitima o juiz a dispensar a prova, o mesmo ocorrendo com a declaração de não saber. Isso porque, como se verá posteriormente, a incontrovérsia só ocorre quando aquele que tinha o ônus de se manifestar, não o faz.(6)

2.2 Fatos Relevantes
A influência na causa determina a utilidade de um determinado fato. Se não possuir relação ou conexão nenhuma com a causa, é porque o fato é inútil, e, por conseguinte, não exercerá nenhuma influência sobre a decisão da causa. São relevantes os fatos pertinentes e que possuam direta influência sobre a causa posta em juízo(7). Em suma, não há necessidade de provar os fatos inúteis, isto é, que não influenciam no resultado prático da demanda(8).
É justamente sob esta premissa que surge o § 2º do art. 331 do Código de Processo Civil:
"Art. 331 - (...)
§ 2º - Se, por qualquer motivo, não for obtida a conciliação, o juiz fixará os pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se necessário."
A fixação dos pontos controvertidos da lide é o procedimento judicial que serve para enquadrar as partes aos fatos relevantes da demanda; através dele, o juiz emoldura o processo, de modo a delimitar sobre quais pontos deverão recair as provas. Embora pouco utilizado na forma como concebido, trata-se de instrumento de grande valia para a condução do processo, sendo necessário enfrentá-lo, inevitavelmente, em algum momento processual, mesmo que na hora de sentenciar.
Uma vez fixado os pontos controvertidos da demanda, estará o juiz legitimado a indeferir provas postuladas pelas partes, se pretenderem provar fatos irrelevantes. Entre os fatos inúteis e irrelevantes, podem-se citar os fatos impossíveis, tais como tentar provar que a mesma pessoa estava em dois lugares diferentes ao mesmo tempo.
2.3 Fatos Determinados
No âmbito processual civil, não se concebe exigir provas de fatos indeterminados ou indefinidos(9). Os fatos a serem expostos pelas partes devem ser distintos, individualizados e caracterizados no tempo e no espaço. Neste sentido, prevê o art. 286 do Código de Processo Civil que "o pedido deve ser certo e determinado"(10).
Portanto, em suas exposições fáticas, incumbe às partes trazer aos autos fatos devidamente caracterizados, portanto suscetíveis de provas. No próprio saneamento do feito, poderá o julgador descartar os fatos que entender serem indeterminados ou indefinidos, permitindo, a priori, às partes emendar a resenha fática.
Neste sentido, cumpre mencionar julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a apelação cível nº 70005795315, da relatoria do Ilustre Desembargador Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, que na oportunidade afirmou que "não há narrativa de fatos certos nem de fundamentos jurídicos que os qualifiquem para fundar o pedido de indenização de danos materiais e de danos morais. Há alegações de situações genéricas".(11)No caso citado, foi determinado o indeferimento da petição inicial.
Em suma, é ônus das partes expor fatos determinados em juízo. Quer dizer que, do contrário, estão sujeitas ao indeferimento da petição inicial, no caso da parte autora, e das demais consequências previstas na lei, se na qualidade de réu da ação.
2.4 Fatos Incontroversos
Torna-se incontroverso o fato quando a parte que tinha o ônus de se manifestar sobre determinada declaração,silencia.Ou seja, é o silêncio da parte que tinha a incumbência de não silenciar que torna o fato incontroverso. Previsto no art. 334, inciso III, do Código de Processo Civil(12), o fato incontroverso pode recair tanto em desfavor do autor como do réu, sempre quando um silenciar quando tinha o ônus de se manifestar quanto à declaração do outro.
Embora não esteja previsto em nenhum dispositivo do Código de Processo Civil, o silêncio ganha relevância quando se fala de fatos incontroversos, inclusive sendo considerado um meio de prova. Isso ocorre porque ele é capaz de influenciar e convencer o juiz em suas decisões, tanto quanto qualquer outro tipo de prova.(13)Imaginemos uma situação onde o autor de uma ação refere na sua petição inicial que o réu lhe pagou determinado título após o prazo de vencimento, exigindo, assim, os competentes encargos moratórios. Em contestação, o réu afirma apenas que o valor principal não estaria correto, silenciando quanto ao atraso no pagamento. O fato "pagamento após o vencimento" fica considerado como incontroverso.
No entanto, importante esclarecer que, sobre os fatos incontroversos, podem recair provas em contrário. No caso acima exemplificado, na fase de instrução processual poderia sobrevir um ofício do banco, em que se comprovaria nos autos mediante o extrato bancário que, em verdade, o título foi pago no dia do vencimento, prejudicando aquilo que se tinha como incontroverso. Quer-se dizer que o silêncio de quem tinha o ônus de se manifestar gera uma presunção iuris tantum, passível, portanto, de prova em contrário.
Muitas vezes questiona-se se, na réplica, o autor tem o ônus de se manifestar em relação aos fatos arrolados pelo réu na sua contestação. Afinal, o silêncio na réplica tornaria incontroversos os fatos deduzidos pelo réu na contestação? Acreditamos que seria de rigor excessivo admitir esta hipótese, pois, em verdade, o autor não tem o ônus de "não silenciar" em réplica; mas, por cautela, prima pelo razoável impugnar na primeira oportunidade as manifestações fáticas trazidas pela contraparte.
2.5 Fatos Confessados
São os fatos tidos como verdadeiros em virtude da confissão, que é meio de prova estatuído pelo art. 348 do Código de Processo Civil, in verbis:
"Art. 348 - Há confissão, quando a parte admite a verdade de um fato, contrário ao seu interesse e favorável ao adversário. A confissão é judicial ou extrajudicial."
Reza o art. 334, inciso II, do CPC: "Não dependem de provas os fatos: (...) II - afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária". Em verdade, não se mostra muito técnico dizer que os fatos confessados não dependem de provas, justamente porque a confissão é, em si, um meio probatório arrolado na lei processual, como visto acima. Desta forma, entende-se deste dispositivo que os fatos confessados não dependem de outros meios de prova.
No clássico conceito de Chiovenda, "confissão é a declaração, por uma parte, da verdade dos fatos afirmados pelo adversário e contrários ao confitente"(14). Esclarece Darci Guimarães Ribeiro, no entanto, que se a outra parte não tinha o ônus de afirmar e provar, não pode ser configurada a confissão(15). Exige-se, aqui, uma declaração (e não mera admissão) ou uma exteriorização, seja oral ou escrita, que revele ao juiz a verdade de um fato que tenha sido alegado por uma das partes e, mesmo contrariando seus interesses, é admitido pela contraparte (confitente)(16).
A confissão é indivisível, nos termos do art. 354 do CPC(17), não podendo ser aceita em parte e rejeitada em parte, com a exceção dos fatos novos.É irretratável por essência, embora não conste na lei processual esta característica. Pode ser judicial (espontânea ou provocada), quando obtida dentro de um processo como meio de prova; ou extrajudicial, quando ocorrer fora do âmbito judicial, porém tendo o mesmo valor probante que a primeira(18). Por fim, nos termos do art. 351 do CPC(19), não é aceita a confissão sobre fatos indisponíveis.

2.6 Fatos Notórios
Muitos divergem quanto ao conceito de "fato notório". Para alguns, são os fatos alegados e que fazem parte da cultura "normal" de determinada região e época. Já para os que são mais restritivos, seriam os fatos dos quais todos os integrantes da relação jurídica processual estariam de acordo de que são por eles conhecidos(20).
Por ser tema de grande abrangência, e até generalidade, o conceito de "fato notório" certamente deve respeitar o limite do espaço e do tempo em que vivem os litigantes. Isto é, a notoriedade somente pode ser concebida como meio de prova quando limitado a um determinado local (região) da qual pertencem os envolvidos, assim como no tempo do processo.
Além disso, o conceito em questão deve levar em consideração os fatos conhecidos pelo "homem médio", assim entendido como seu nível de cultura média na sociedade e no tempo em que vive.Portanto, conceitua-se "fato notório" como sendo o fato conhecível por um homem de cultura média, no tempo em que transcorre o processo.
A legislação processual civil, através do art. 334, inciso I(21), prevê o fato notório, indicando estar dispensado de prova (notorianomegentprobationem). Mas, em função do princípio da livre apreciação das provas pelo juiz (previsto no art. 131 do Código de Processo Civil(22)), entendemos que é o juiz quem delimita em cada caso se determinado fato alegado é notório ou não. E deve fazê-lo no momento da fixação dos pontos controvertidos da lide (art. 331, § 2º, do CPC), permitindo, assim, o contraditório e a ampla defesa.

3 Conclusão
Após este breve estudo sobre alguns dos fatos importantes no âmbito do processo civil, esperamos ter trazido ao leitor estímulo à compreensão das características próprias de cada tipo, estejam eles arrolados na legislação, ou mesmo como fruto de construções doutrinárias respeitadas. No dia a dia notamos inúmeras confusões permeando o direito probatório e, neste prisma, a inteligência dos fatos é meio eficaz de sanar estas dificuldades.
Saber como utilizar cada tipo de fato durante um processo pode assegurar ao usuário do direito meios mais concretos para defesa dos interesses de seus constituintes, sobressaindo-se nas demandas aos que ignoram essas diferenças.Em termos de processo, a diferença se faz em detalhes, e o estudo específico dos fatos expressa justamente esta peculiaridade no âmbito do direito processual civil.
4 Referências Bibliográficas

BENTHAN, Jeremías. Tratado de las pruebas judiciales. E. Dumont (org.). Manuel Ossorio Florit (trad.). Buenos Aires: Valletta, 1971, v. 01.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 1998.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, v. 3.
MELENDO, Santiago Sentis. La prueba - los grandes temas del derecho probatório. Buenos Aires: Ejea, 1978.
PORTO, Sério G. Prova: teoria e aspectos gerais no processo civil. In: Revista de estudos jurídicos - Unisinos, 1984, nº 39.
RIBEIRO, Darci Guimarães. Provas atípicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil.Volume 1:Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 5. ed. São Paulo: RT, 2002.

Notas
(1)BENTHAN, Jeremías. Tratado de las pruebas judiciales. E. Dumont (org.). Manuel Ossorio Florit (trad.). Buenos Aires: Valletta, 1971, v. 01, p. 10.
(2)PORTO, Sério G. Prova: teoria e aspectos gerais no processo civil. In: Revista de estudos jurídicos - Unisinos, 1984, nº 39, p 10.
(3)DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, v. 3, p. 58.
(4)MELENDO, Santiago Sentis. La prueba - los grandes temas del derecho probatório. Buenos Aires: Ejea, 1978, p. 12
(5)RIBEIRO, Darci Guimarães. Provas atípicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 76.
(6) Idem, p. 83.
(7)Neste sentido: EXECUÇÃO. "CONTRATO DE TRANSAÇÃO E CONFISSÃO DE DÍVIDA E OUTRAS AVENÇAS". CERCEAMENTO DE DEFESA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. - Dilação probatória desnecessária na espécie. Em regra, saber se os fatos relevantes à solução do conflito já se encontram suficientemente comprovados, de molde a dispensar a produção de prova em audiência e a permitir o julgamento antecipado da lide, é tema exigente do reexame e da análise do conjunto probatório, não admissível na sede angusta de recurso especial. - Não é nulo o julgado que se pronuncia sobre os pontos essenciais da controvérsia. O vício da omissão somente ocorreria se o julgador deixasse de se manifestar sobre matéria relevante ao deslinde da lide. - (...). Recurso especial não conhecido. (REsp 159.747/SP, Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 18.10.05, DJ 12.12.05, p. 386).
(8)Frustra probatur quod probatum non relevant, do brocardo latino.
(9)RIBEIRO, Darci Guimarães, op. cit., p. 87.
(10)Necessário dizer que, conforme prevê o mesmo dispositivo legal, é lícito à parte formular pedido genérico nas hipóteses dos incisos arrolados: I - nas ações universais, se não puder o autor individuar na petição os bens demandados; II - quando não for possível determinar, de modo definitivo, as consequências do ato ou do fato ilícito; III - quando a determinação do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu.
(11)Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. CAUSA DE PEDIR. FATOS E FUNDAMENTOS DO PEDIDO. IMPOSSIBILIDADE DE DEFESA E DE PRESTAÇÃO REGULAR DA JURISDIÇÃO. Se a inicial não descreve fatos determinados, mas apenas situações genéricas, que não podem ser qualificadas pelos fundamentos jurídicos, a defesa fica prejudicada, a instrução se torna impossível e a prestação jurisdicional fica completamente prejudicada. Situação dos autos em que a solução sentencial não poderia ser outra que não o indeferimento da inicial. Apelo desprovido. (Apelação Cível Nº 70005795315, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, Julgado em 17.03.04).
(12)Art. 334 - Não dependem de prova os fatos: (...) III - admitidos, no processo, como incontroversos;
(13)RIBEIRO, Darci Guimarães, op. cit., p. 88-89.
(14)CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 1998, p. 118.
(15)RIBEIRO, Darci Guimarães, op cit., p. 89.
(16)WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil.Volume 1:Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 5. Ed. São Paulo: RT, 2002, p. 463.
(17)Art. 354 - A confissão é, de regra, indivisível, não podendo a parte, que a quiser invocar como prova, aceitá-la no tópico que a beneficiar e rejeitá-la no que lhe for desfavorável. Cindir-se-á, todavia, quando o confitente lhe aduzir fatos novos, suscetíveis de constituir fundamento de defesa de direito material ou de reconvenção.
(18)Para aprofundamento do tema, v. WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil, volume 1: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 5ªed. São Paulo: RT, 2002.
(19)Art. 351 - Não vale como confissão a admissão, em juízo, de fatos relativos a direitos indisponíveis.
(20)Como, por exemplo, WAMBIER, Luiz Rodrigues, op. Cit., p. 442.
(21)Art. 334 - Não dependem de prova os fatos: I - notórios; (...)
(22)Art. 131 - O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.

Extraído de Lex Magister