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31 maio 2012

O QUE SIGNIFICA MESMO O CUIDADO?




Leonardo Boff
Escritor, teólogo e filósofo.

Hoje as discussões em torno do desenvolvimento sustentável, um dos temas centrais da Rio+20, sequestraram a categoria de sustentabilidade. Ela não se reduz ao desenvolvimento realmente existente que possui uma lógica contrária à sustentabilidade. Enquanto aquele se rege pela linearidade, pelo crescimento ilimitado que implica exploração da natureza e criação de profundas desigualdades, a sustentabilidade é circular, envolve todos os seres com relações de interdependência e de inclusão, de sorte que todos podem e devem conviver e coevoluir. Sustentável é uma realidade que consegue se manter, se reproduzir, conservar-se à altura dos desafios do ambiente e estar sempre bem. E isso resulta do conjunto das relações de interdependência que mantém com todos os demais seres  e com seus respectivos habitats. A sustentabilidade funda um paradigma que deve se realizar em todos os âmbitos do real. 
Para que a sustentabilidade realmente ocorra, especialmente quando entra o fator humano, capaz de intervir nos processos naturais, não basta o  funcionamento mecânico dos processos de interdependência e inclusão. Faz-se mister uma outra realidade a se compor com a sustentabilidade:  o cuidado. Ele também funda um novo paradigma. 

Antes de mais nada, o cuidado constitui uma constante cosmológica. Se as energias originárias e os elementos primeiros não fossem regidos por um sutilíssimo cuidado para que tudo mantivesse a sua devida proporção, o universo não teria surgido e nós não estaríamos aqui escrevendo sobre o cuidado. Nós mesmos, somos filhos e filhas do cuidado. Se nossasmães não nos tivessem acolhido com infinito cuidado, não teríamos como descer do berço e ir buscar o nosso alimento. O cuidado é aquela condição prévia que permite um ser vir à existência. É o orientador antecipado de nossas ações para que sejam construtivas e não destrutivas.  

Em tudo o que fazemos, entra o cuidado. Cuidamos do que amamos. Amamos o que cuidamos. Hoje, pelos conhecimentos que possuímos acerca dos riscos que pesam sobre a Terra e a vida, se não cuidarmos, surge a ameaça de nosso desaparecimento como espécie, enquanto a Terra, empobrecida, seguirá, pelos séculos afora, seu curso pelo cosmos. Até que, quem sabe, surja um outro ser dotado de alta complexidade e cuidado, capaz de suportar o espírito e a consciência.
Resumindo os vários significados de cuidado construídos a partir de muitas fontes que não cabe aqui referir mas que vêm da mais alta antiguidade, dos gregos, dos romanos, passando por Santo Agostinho e culminando em Martin Heidegger, podemos ver no cuidado a essência mesma do ser humano, no mundo, junto com  os outros e voltado para o futuro. Identificamos quatro grandes sentidos, todos mutuamente implicados. 
Primeiro: Cuidado é uma atitude de relação amorosa, suave, amigável,harmoniosa e protetora para com a realidade, pessoal, social e ambiental.    
Metaforicamente, podemos dizer que o cuidado é a mão aberta que se estende para a carícia essencial, para o aperto das mãos, com os dedos que se entrelaçam com outros dedos para formar uma aliança de cooperação e a união de forças. Ele se opõe à mão fechada e ao punho cerrado para submeter e dominar o outro. 
Segundo: Cuidado é todo tipo de preocupação, inquietação, desassossego, incômodo, estresse, temor e até medo face a pessoas e a realidades com as quais estamos afetivamente envolvidos, e por isso nos são preciosas. 
Esse tipo de cuidado acompanha-nos em cada momento e em cada fase de nossa vida. É o envolvimento com pessoas que nos são queridas ou com situações que nos são caras. Elas nos trazem cuidados e nos fazem viver o cuidado existencial. 

Terceiro: Cuidado é a vivência da relação entre a necessidade de ser cuidado e a vontade e a predisposição de cuidar, criando um conjunto de apoios e  proteções (holding) que torna posível esta relação indissociável, em nível pessoal, social e com todos os seres viventes. 

O cuidado-amoroso, o cuidado-preocupação e o cuidado-proteção-apoio são existenciais, vale dizer, dados objetivos da estrutura de nosso ser no tempo, no espaço e na história, como no-lo tem mostrado Winnicott. São prévios a qualquer outro ato e subjazem a tudo o que empreendermos.  
Quarto: Cuidado-precaução e cuidado-prevenção constituem aquelas atitudes e comportamentos que devem ser evitados por causa das consequências danosas previsíveis (prevenção) e aquelas imprevisíveis pelo insegurança dos dados científicos e pela imprevisibilidade dos efeitos prejudicais ao sistema-vida e  a sistema-Terra (precaução). 
O cuidado-prevenção e precaução nascem de nossa missão de cuidadores de todo o ser. Somos seres éticos e responsáveis, quer dizer, nos damos conta das consequências benéficas ou maléficas de nossos atos, atitudes e comportamentos. 
Como se deduz, o cuidado está ligado a questões vitais que podem significar a destruição de nosso futuro ou a manutenção de nossa vida sobre este pequeno e belo planeta. Só vivendo radicalmente o cuidado garantiremos a sustentabilidade necessária à nossa Casa Comum e à nossa vida.  
Extraído de Jornal do Brasil, 21/05/2012

25 maio 2012

CANCELAMENTO DE PASSAGEM AÉREA E RESTITUIÇÃO DE VALOR





O blog publica às sextas-feiras decisões da Primeira Turma do Colegiado Recursal dos Juizados Especiais de Vitória, no biênio 2004/2006, período em que tive a honra de integrar aquele dinâmico sodalício. Não há compromisso de publicação da integralidade dos julgados nem com a identificação das partes, vez que interessa apenas revelar alguns temas interessantes que são debatidos no cotidiano dos Juizados Especiais, os quais inegavelmente deram uma nova dinâmica ao judiciário brasileiro. E de tal sorte que cada vez mais são ampliadas suas competências. Pelo andar da carruagem, em breve o que era especial passará a ser comum, o que faz alguns preverem em futuro próximo o sepultamento das varas cíveis comuns, onde ou se consegue um provimento cautelar ou antecipatório ou não se vê resultado concreto em pelo menos longos anos de litígio.

Hoje o caso refere-se ao cancelamento de viagem aérea, como segue:


RECURSO INOMINADO Nº 6.838/05
ACÓRDÃO
EMENTA: RECURSO INOMINADO. TRANSPORTE AÉREO. RESCISÃO DE CONTRATO. RETENÇÃO DE VALOR COM BASE EM PORTARIA DO DAC. ILEGALIDADE. INCIDÊNCIA DE NORMA EXPRESSA CODIFICADA. PREPONDERÂNCIA DO CÓDIGO CIVIL.  
1.- A COMPANHIA DE AVIAÇÃO É CONCESSIONÁRIA DE  SERVIÇO PÚBLICO DE TRANSPORTE AÉREO  E COMO TAL APLICAM-SE-LHE AS DISPOSIÇÕES DO CÓDIGO BRASILEIRO DE AERONÁUTICA, CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E CÓDIGO CIVIL.
2.- EM CASO DE RESCISÃO DE CONTRATO DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS, COM PRAZO SUFICIENTE PARA RENEGOCIAÇÃO DAS PASSAGENS, DEVE A EMPRESA AÉREA PROMOVER A RESTITUIÇÃO DO VALOR PAGO, PERMITINDO-SE A RETENÇÃO ATÉ O PERCENTUAL DE 5% (CINCO POR CENTO) DO VALOR DA PASSAGEM NOS TERMOS DO ARTIGO 740,§ 3º, DO CÓDIGO CIVIL, QUE PREVALECE SOBRE PORTARIA DO DAC, CONSOANTE PRINCÍPIO DA HIERARQUIA DAS NORMAS.
3.- NÃO SE TRATANDO DE COBRANÇA DE QUANTIA INDEVIDA DO CONSUMIDOR, MAS DE RESTITUIÇÃO EM PERCENTUAL INFERIOR AO QUE PREVISTO EM LEI POR EQUIVOCADA INTERPRETAÇÃO DE NORMAS LEGAIS, DESCABIDA A APLICAÇÃO DA PENALIDADE PREVISTA NO ARTIGO 42 DO CDC.
4.- RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos, ACORDAM os Juízes da Primeira Turma Recursal do Colegiado Recursal dos Juizados Especiais, à unanimidade, conhecer do recurso para dar-lhe parcial provimento, nos termos do voto do Relator, que deste passa a fazer parte integrante.
Vitória, ES,  de setembro de 2005.

R E L A T Ó R I O

Os autores ajuizaram Ação de Repetição de Indébito c/c restituição em dobro em face de empresa de TRANSPORTES AÉREOS S/A, alegando que pactuaram com a requerida contrato de transporte de pessoas, tendo reservado e adquirido os bilhetes B6K1AH, Y2BMAE e A4PYAC, pela quantia de R$ 1.152,00, R$ 1.133,00 e R$ 1.152,00, respectivamente, mais a taxa de embarque no valor de R$ 16,35, referentes às passagens de ida (5.2.05) e volta (9.2.05) no trajeto Vitória/Salvador. Alegaram, ainda, que por motivos alheios a vontade dos mesmos, cancelaram o contrato em meados de novembro de 2004, tendo a requerida aplicado a cláusula contratual concernente a reembolso, deduzindo como taxa administrativa a percentagem de 20% (vinte por cento) do valor da passagem, restituindo integramente apenas a taxa de embarque. Assim, requereram a declaração de nulidade da referida cláusula, com base nas disposições do Código Civil, bem como a restituição em dobro.
A r. sentença de fls. 118/120 julgou procedente o pedido do autor, declarando a nulidade da cláusula de reembolso disposta no contrato de transporte de passageiros em que estipula como taxa administrativa o percentual de 20% (vinte por cento)  do valor pago pela passagem, para aplicar o percentual de 5% (cinco por cento), nos termos do art. 740,§3º,do Código Civil de 2002 e determinando9 a restituição dos valores pagos indevidamente em dobro, nos termos do art. 42, parágrafo único da lei 8078/90.
Inconformada, a companhia aérea interpôs recurso inominado a fls. 122/132, alegando prevalência das normas previstas no DAC, vez que o CC prevê apenas multa compensatória e no caso do contrato cuida-se de taxa administrativa, que engloba outros títulos, bem como o não cabimento da devolução em dobro, pleiteando o provimento do recurso para reformar integralmente a sentença ou que a restituição não se dê em duplicidade.
Contra-razões a fls. 138/145 rebatendo os argumentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
É o relatório.

            V O T O
                       
Verificando que foram atendidos os pressupostos de admissibilidade, sobremodo diante da certidão de fls. 138, conheço do recurso.  

A recorrente é concessionária de serviço público de transporte aéreo, aplicando-se-lhe as normas do Código Brasileiro de Aeronáutica, do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil, como ela própria reconhece em seu recurso.

Em caso de antinomia entre o CBA e o CDC, preponderam as regras deste último, consoante iterativa jurisprudência, valendo referir por mera exemplificação e dado o seu conteúdo didático, o seguinte julgado:

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA
Acórdão: Apelação Cível 2004.030123-4
Relator: Dr. Sérgio Izidoro Heil.
Data da Decisão: 04/03/2005

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - EXTRAVIO DE BAGAGEM - CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO CARACTERIZADO - APLICAÇÃO DO CDC - PRAZO DECADENCIAL DE CINCO ANOS - DANO MORAL - QUANTUM FIXADO MODERADAMENTE - RECURSO DESPROVIDO     "Não se caracteriza o cerceamento de defesa quando há nos autos elementos suficientes à formação do convencimento do juiz, permitindo-lhe o julgamento antecipado da lide" (Embargos Infringentes n. 2000.024881-9, de Jaguaruna, rel. Des. Sérgio Paladino).     "O Código de Defesa do Consumidor instituiu nova política de proteção ao consumidor, tendo suas regras abrangido todas as relações de consumo. Em caso de antinomia entre o Código Brasileiro de Aeronáutica e o CDC, prevalece este último, porque posterior e especial, além de editado em consonância com a Constituição Federal" (Apelação Cível n. 97.013595-5, da Capital, rel. designado Des. Pedro Manoel Abreu).
             
Ademais, ocorre que o Código de Defesa do Consumidor-CDC, aplica-se a todas as relações de consumo em qualquer campo do direito pátrio, como assevera, com a autoridade de um de seus autores, o eminente Professor Antônio Herman Benjamin:

"O Código de Defesa do Consumidor pertence àquela categoria de leis denominadas ‘horizontais’, cujo campo de aplicação invade, por assim dizer, todas as disciplinas jurídicas, do Dir. Bancário ao Dir. de Seguros, do Dir.Imobiliário ao Dir. Aeronáutico, do Dir. Penal ao Dir. Processual Civil. São normas que tem função, não regrar uma determinada matéria, mas proteger sujeitos particulares, mesmo que estejam eles igualmente abrigados sob outros regimes jurídicos. Daí o caráter "especialíssimo" do Direito do Consumidor (...) o Dir. do Consumidor é disciplina especial em razão do sujeito tutelado. E como é curial, prepondera o sistema protetório do indivíduo em detretimento do regime protetório do serviço ou produto. É a fisionomia humanista que informa todo o Direito do Welfare State." (O Transporte aéreo e o CDC, Revista Direito do Consumidor nº26).

Porém, insiste a recorrente na inconsistente tese de prevalência da Portaria nº 676/2000, do Departamento de Aviação Civil – DAC, para justificar a retenção de 20% sobre o valor das passagens aéreas vendidas aos recorridos em caso de restituição, por cancelamento da viagem, bem como o disposto no contrato de transporte firmado entre as partes (fls. 108/116).

Como bem assentado na r.sentença impugnada incide na espécie o princípio da hierarquia das normas, segundo o qual uma Portaria jamais pode prevalecer sobre disposições traçadas por uma lei.

A Portaria do DAC, datada do ano de 2000 cumpriu seu papel enquanto não havia disposição expressa em contrário no antigo Código Civil de 1916. Com a publicação do novo Código Civil de 2002, o transporte de modo geral e o de passageiros, em particular, tiveram tratamento adequado, revogando tudo aquilo que a Portaria dispõe de modo diverso.

Assim, preponderam, prevalecem, impõem-se a todos os transportadores, quer do ramo aeronáutico, rodoviário, aquaviário ou marítimo seus dispositivos quanto à rescisão contratual, “verbis”:

Art. 740. O passageiro tem direito a rescindir o contrato de transporte antes de iniciada a viagem, sendo-lhe devida a restituição do valor da passagem, desde que feita a comunicação ao transportador em tempo de ser renegociada.
...
§ 3 o Nas hipóteses previstas neste artigo, o transportador terá direito de reter até cinco por cento da importância a ser restituída ao passageiro, a título de multa compensatória.
...

Ora, os recorridos rescindiram o contrato cerca de três meses antes da data marcada para a viagem, tempo mais do que suficiente para a recorrente revendê-las.

Portanto, tenho por correta, nesta parte, a r.sentença monocrática.

Entretanto, quanto à devolução em dobro do valor das passagens penso não se aplicar ao caso em exame a penalidade contida no parágrafo único do artigo 42 do CDC.

Esta Turma, em várias decisões, adotou a corrente prevalente na doutrina pátria de que somente em caso de engano injustificável, dolo ou má fé se aplica a dobra referida no artigo 42 do CDC.


Também sigo o entendimento de que havendo cobrança indevida por parte do fornecedor, este só deverá devolver o excesso em dobro se ficar demonstrado quaisquer dos três requisitos acima referidos.

Até porque invocável, por aplicação analógica, o verbete da Súmula 159 do STF: “COBRANÇA EXCESSIVA, MAS DE BOA-FÉ, NÃO DÁ LUGAR ÀS SANÇÕES DO ART. 1531 DO CÓDIGO CIVIL.”

Vale lembrar que o art. 1.531 do Código Civil revogado a que se refere o enunciado da Suprema Corte tratava de situação análoga prevendo a devolução em dobro contra aquele que demandasse por dívida já paga.

Apesar da revogação do Código Civil de 1916 a atualidade da discussão permanece, eis que o preceito então corporificado no art. 1.531, encontra-se incorporado no texto do art. 940 do Codex em vigor.

Assim sendo, se a cobrança indevida decorrer de um equívoco não atribuível à má fé do fornecedor, não se permite a exigência da restituição em dobro.



Nesse mesmo sentido são os ensinamentos de Arruda Alvim (ALVIM, Arruda et alli. Código do Consumidor Comentado. 2ª edição. São Paulo: RT. 1995) 
e Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin (GRINOVER, Ada Pellegrini et alli. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 5ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1998).


Avulta ainda considerar que no caso dos autos sequer houve qualquer cobrança indevida, porquanto na venda das passagens foi cobrado o valor correto, segundo a tabela de preços de mercado da recorrente e muito menos pagamento indevido.

Apenas a restituição, em face do cancelamento dos contratos, por desistência da viagem - por parte dos recorridos - é que a devolução se deu em dissonância com o disposto no Código Civil e isso não se configura em má fé ou dolo, mas equivocada interpretação das normas legais existentes por parte da recorrente.

Com fundamento nessas considerações, dou parcial provimento ao recurso, apenas para excluir a dobra do valor da restituição determinada na sentença, que, no mais, fica mantida por seus jurídicos fundamentos.

Sem imposição de ônus sucumbenciais, na inteligência do disposto no artigo 55 da LJE.

É como voto.

21 maio 2012

O MÚTUO E A AGIOTAGEM




Clito Fornaciari Júnior

Mestre em Direito.Advogado.Presidente da Comissão da Reforma do CPC da OAB/SP


O chamado agiota tem recebido de nossa Justiça um tratamento inclemente. Tal quiçá se deva à repugnância que por ele se encontra no meio social, olvidando-se, todavia, seus devedores e também seus julgadores de que sua atuação comercial se dá sob enorme risco, pois passa a atender exatamente a quem não tem (ou não mais tem) acesso ao crédito bancário, sendo, pois, considerado inidôneo para a realização de transações dessa ordem. Resta-lhe, assim, o caminho do "mútuo civil", ao qual se rende sem questionamento algum, até por não ter força para discutir. Parece mesmo ter se difundido a ideia de que a própria atividade do empréstimo de dinheiro a juros estaria vedada ao particular e pessoa física, ficando restrita aos estabelecimentos bancários, o que não é correto, tanto que o mútuo tem no Código Civil ampla disciplina, que não teria sentido e razão de ser caso fosse reservada aos bancos, em vista do que suas normas estariam deslocadas.
O divisor de águas entre o simples mutuante e o endemoniado agiota está na taxa de juros, tanto assim que a chamada Lei de Usura (Decreto nº 22.626/1933), em seu art. 1º, diz ser vedado estipular em contratos juros a taxas superiores ao dobro da legal. Acrescenta, ainda, o artigo que quem o fizer "será punido nos termos desta lei", colaborando essa asserção para reforçar a difusão do caráter pecaminoso da prática em questão.

É lógico e se faz de rigor recriminar práticas de mutuantes que buscam burlar a previsão legal, maquiando ajustes e garantias, como, por exemplo, se verifica com a simulação de venda de bens, com cláusula de recompra mediante certo preço, no qual se embutem juros, ou, então, firma-se contrato de locação, de modo que o suposto aluguel seria o quanto dos juros. Esse tipo de negócio, objetivando eliminar o risco da operação, não pode prevalecer, sendo de se proclamar a nulidade da suposta compra e venda ou da locação, fazendo desaparecer a garantia (cf. TJRS, Revista de Jurisprudência, 218/188; TJSP, Revista dos Tribunais, 830/192). De qualquer modo, isso não deve afetar ou comprometer o negócio do mútuo e sua real dimensão, que há de ser honrado nos limites da legalidade.
Para tanto e também para enfrentar a questão da taxa de juros, o sistema criou regra de inversão do ônus da prova, desde que se mostrem indícios da prática da agiotagem. Nessa linha, o art. 3º da Medida Provisória nº 2.172-32, objeto de sucessivas reedições, prevê que, nas ações em que se discutem contratos que ofendam a taxa de juros permitida, "incumbirá ao credor ou beneficiário do negócio o ônus de provar a regularidade jurídica das correspondentes obrigações, sempre que demonstrada pelo prejudicado ou pelas circunstâncias do caso, a verossimilhança da alegação". Tanto se faz possível, desse modo, quer para provar atos simulados, como para demonstrar a simples taxa de juros praticada, reclamando-se do credor, nesse caso, a prova do quanto despendeu em favor do devedor, de modo a também evitar que o todo pago pelo devedor seja entendido como quitação de juros (TJSP, apelação 0013689-62.2010.8.26.0000, rel. Rubens Cury, julgado em 16.11.2011).

O que não pode ocorrer é a consideração de que exista agiotagem sem a prova, que pode ser direta ou decorrente da inversão, da cobrança de juros acima do percentual legal. O fato, por exemplo, de existirem indícios de práticas de agiotagem autoriza a inversão do ônus da prova, podendo entender-se como a verossimilhança reclamada pela medida provisória, mas isso não é o bastante para incriminar o ato específico que se discute, como já se deu em decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (Apelação nº 7044450-5, rel. Melo Colombi, julgado em 31.01.07), pois não se pode reputar estar havendo agiotagem, em certo e determinado caso, por simples atuação passada do mutuante nesse segmento.
De outro lado, há que se ter cuidado, que tem faltado muito à miúde (cf., entre outros, TJRS, apelação nº 70002802940, rel. Luiz Ary Vessini de Lima, Revista de Jurisprudência, 219/222), para se definir as consequências da cobrança de juros acima do patamar legal, não se podendo usar esse pecado para conferir uma carta de alforria ao devedor, até porque pode estar se permitindo o seu locupletamento ilícito, isentando-o do pagamento do quanto efetivamente deve por lhe ter sido mutuado. A lei de usura dá ao prejudicado o direito de repetir o que houver pagado além da taxa legal (art. 11), não se lhe concedendo, a contrario sensu, nada mais pagar, sequer mesmo restituir o quanto recebera. Não há sanção desta ordem contra o credor.

Nessa linha, importante e qualificada luz vem de ser trazida à questão por acórdão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, da pena de Sidnei Beneti, no julgamento do REsp 1.106.625 (julgamento em 16.08.2011), por meio da qual o devedor buscava o reconhecimento da nulidade do negócio jurídico firmado, de vez que fora reconhecida a cobrança de juros acima da taxa permitida. Escorava-se o recorrente no art. 145, II, do Código de 1916 (atual 166, II), que reputa nulo o ato jurídico cujo objeto for ilícito. Colocou-se o relator o dilema de perquirir se a nulidade é inafastável ou se possível se faz salvar o ato, naquilo que não for comprometido. Enfatizou, então, que a ordem jurídica não é inimiga dos interesses individuais, sendo a teoria dos negócios jurídicos informada pela conservação desses, por aí estar também o interesse econômico da sociedade, existindo inúmeros dispositivos de preservação de atos e negócios jurídicos, entre os quais o art. 184 do Código Civil atual é dos mais importantes, a ele somando-se o § 2º, do art. 157, que cuida da lesão e da possibilidade de reduzir o proveito, e o art. 170, que permite a conversão do negócio jurídico, mesmo que marcado pela nulidade.

Lançadas essas premissas, o acórdão refuta a aplicação dos arts. 170 e 184: o primeiro porque não se teria como afirmar a concordância do credor com a redução dos juros; e o segundo porque não se poderia dizer existir no mútuo em questão uma parte válida e outra inválida, na medida em que a taxa de juros é um dos requisitos essenciais desse contrato.
Ainda assim, porém, o julgado manteve o negócio, fazendo-o com amparo no art. 591 do Código Civil, que prevê, como autêntico princípio dos contratos, a possibilidade de redução de juros quando pactuados em excesso, independentemente de saberem as partes da legalidade ou ilegalidade do quanto convencionaram. Arrematou-se, por fim, com a regra do art. 11 do Decreto nº 22.626/1933, dizendo que a norma se conforta com a repetição somente do excesso, importando isso em dizer que todo o resto deve ser mantido, pois, do contrário, a previsão legal deveria ser no sentido de apregoar a nulidade e a plena restituição das partes ao estado anterior à celebração do negócio.

Sem dúvida, boas luzes foram trazidas ao tema, que deve ser enfrentado com roupagem jurídica, sem os preconceitos que a figura em si do agiota pode trazer à mente de quem possa um dia dever.
Extraído de Lex Magister, Ed. 14/05/2012

16 maio 2012

TRAIÇÃO E MORTE DENTRO DO CANGAÇO


 
Archimedes Marques
Delegado de Policia no Estado de Sergipe. Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Segurança Pública pela Universidade Federal de Sergipe

Consta da história que o sanguinário e impiedoso cangaceiro Zé Baiano, chefe de um dos grupos de Lampião, atuava principalmente na região de Frei Paulo e adjacências, no nosso querido Estado de Sergipe, inclusive era um rico bandido que tinha a audácia de também ser um forte agiota, emprestando dinheiro a juros exorbitantes para fazendeiros e comerciantes daquelas cercanias.


cangaceiro Zé Baiano

O famoso bandoleiro ferrador Zé Baiano, apesar da sua feiúra em todos os sentidos, tinha o privilégio de ter como companheira a mais linda e atraente das cangaceiras, Lídia. Contaram os remanescentes do cangaço, mais de perto os então cangaceiros sobreviventes e alguns ex-coiteiros e protetores de Lampião, que a linda Lídia era daquelas mulheres de “fechar quarteirão”, de deixar todos os cabras-machos “babando” de desejo, principalmente quando se apresentava saindo dos rios ou lagoas em vestido molhado e colado ao seu estrutural corpo. Diziam ser um verdadeiro deslumbre de se ver a cangaceira Lídia no seu andar provocante, mas infelizmente não há uma fotografia dela sequer para assim comprovar tal beleza.

Por isso era admirada e desejada por todos os cangaceiros, mas ninguém se atrevia a dar uma “cantada” na moça, até porque, apesar de todos ali serem bandidos perigosos, havia muito respeito dentro do acampamento. Essa era uma das regras impostas e prova inconteste da liderança e comando de Lampião, ou seja, exigia o chefe, acima de tudo, que todos se respeitassem mutuamente e que só houvesse sexo entre os casais devidamente conquistados e efetivados. Além disso tudo, o próprio Zé Baiano, pela sua crueldade, era dos mais respeitados dentro do bando e mais ainda fora do acampamento, onde quer que chegasse. O seu nome fazia arrepiar e tremer de medo qualquer um, talvez até mais do que o próprio Lampião que era bem mais complacente. Um temível cangaceiro acostumado a ferrar mulheres com ferro em brasa com as iniciais JB nos seus rostos, virilhas ou nádegas somente pelo simples fato delas usarem cabelos curtos, maquiagens ou roupas decotadas. Enfim, um psicopata impiedoso, ignorante em todos os sentidos que matava, estuprava, roubava e torturava as suas vítimas sem dó ou piedade.


Maria Marques "ferrada" por Zé Baiano

Ocorre, porém, que o desejo da carne terminou sobrepondo todos os perigos possíveis e assim a linda cangaceira Lídia terminou por ceder ou mesmo procurou os encantos do cangaceiro conhecido por Bem-te-vi e com ele passou a cometer adultério em eloquentes e quentes encontros sexuais dentro do mato quando da ausência de Zé Baiano no acampamento. No entanto, o cangaceiro Besouro que também já estava de olho em Lídia há algum tempo e até desconfiado que ela traia Zé Baiano com o Bem-te-vi, certo dia seguiu os dois quando eles entraram disfarçadamente mato adentro, pegando-os em flagrante na hora do ardente sexo. Daí fez uma proposta para a Lídia que se ela também mantivesse relações sexuais com ele, o segredo ficaria somente entre os três, caso contrário ele contaria tudo a Zé Baiano. Indignada, a corajosa Lídia retrucou agressivamente com palavras de baixo calão o cangaceiro Besouro e sua indecente chantagem.

Então, naquela mesma noite, quando todos estavam reunidos em volta a uma fogueira, contando e recontando as diversas histórias de Trancoso, histórias de assombração, histórias de botijas e histórias diversas das guerras do cangaço, o bandido flagranteador Besouro provocou a Lídia que apesar de tudo não arrefeceu mostrando força, coragem e determinação mesmo sabendo que tal gesto poderia valer a sua própria vida.

Presentes estavam os maiorais do cangaço que “lavaram as suas mãos” sem interferirem na decisão, a exemplo do supremo chefe Lampião e de outros da sua inteira confiança como Corisco, Luís Pedro, Moreno, Virginio e Labareda, além do próprio traído, cangaceiro Zé Baiano. Corajosa, afoita, determinada, atrevida no atrevimento suicida das mulheres decididas da época e até mesmo inconsequente para o momento, Lídia repeliu o seu companheiro surpreso e enlouquecido de raiva e ódio, Zé Baiano, exclamando em alto e bom som: Estive com ele, sim!... Que tem isso?... O que é meu eu dou a quem quero!...

Enlouquecido em místico de vergonha, raiva, ódio e desespero ao mesmo tempo, Zé Baiano arrastou Lídia até uma árvore ali perto e após amarrá-la, matou-a impiedosamente a cacetadas e depois chorou copiosamente a perda do seu grande amor, enterrando o seu tão desfigurado corpo do que antes tinha sido uma linda mulher. Para ele a sua honra fora lavada com o sangue da traidora. A partir de então Zé Baiano que já era malvado ficou ainda pior, principalmente contra as mulheres.

Já o cangaceiro delator, Besouro, foi morto ali mesmo por ordem de Lampião no momento em que Lídia disse que ele assim tinha denunciado o fato em contrapartida dela não ter aceitado também transar com ele. Por sua vez, o cangaceiro Bem-te-vi logo no início da conversa, de um pulo, tratou de fugir na escuridão, mato adentro em desabalada carreira para nunca mais se ter notícias dele.

Era um tempo atroz em que não se aceitavam traições femininas em hipótese alguma e quem assim se atrevesse a contrariar as regras pagava com a sua própria vida.

Artigo enviado pelo Autor.

12 maio 2012

RISCO DE FRATURA NO ESTADO DE DIREITO




Nelson Calandra
Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)


Volta e meia, mandamos a bola na trave e não gritamos gol, porque ficamos na periferia dos problemas e, por essa razão, não acertamos o chute. Alterações legislativas, como a que pretende criminalizar parcialmente o enriquecimento ilícito em nome do combate à corrupção, nada resolvem.

Nós vivemos em um país democrático. A exigência é que para, punir alguém, haja previsão legal, e o encarregado de provar a culpa deve ser o Estado e não o réu.

Na medida em que se cria uma ferramenta de exceção, com o mote de punir pessoas, em uma situação em que elas tenham que demonstrar que são inocentes, abre-se uma brecha no sistema processual penal e no sistema de garantia constitucional que pode gerar uma fratura no Estado de Direito.

Não é possível criar uma lei dizendo que "nós não temos a menor competência para combater a corrupção; é permitido roubar o Estado, só que, dez ou 15 anos depois, aquele que acumulou fortuna a custa do erário, se ainda estiver vivo, tem de mostrar que não é culpado".

Assim, se ele não provar que é inocente, depois de décadas, será punido como culpado. Isso é uma declaração de falência do próprio sistema processual e penal brasileiro.

A proposta inverte, na verdade, o ônus da prova. Se a mudança for feita sem alterar a Constituição e o elenco de garantias fundamentais, será inconstitucional. Se for alterada por meio de emenda constitucional, também será inconstitucional, porque se trata de uma cláusula que não pode derrogar as garantias do sistema.

Em vez de seguir tendência mundial, a proposta nos põe na contramão da história ao punir apenas o servidor, o político e o juiz, ao contrário do que assistimos hoje, quando grupos privados comandam rede criminosa de desvio do dinheiro público.

Talvez a grande modificação necessária não esteja dentro da legislação penal, mas na órbita do Poder Legislativo.

Por exemplo, é necessário repensar algumas regras ligadas às CPIs. Uma vez instaladas, elas são conduzidas por pessoas que, embora ilustres, não têm vivência no campo das ações penais ou da investigação processual.

O risco que se corre é produzir uma densa documentação que, muitas vezes, não vem calcada nas boas técnicas processuais penais, que nós, juízes e promotores, somos obrigados a observar no dia a dia.

O que reduz a corrupção é um sistema legal que funcione, penas cumpridas efetivamente e um Ministério Público e uma Polícia Federal equipados para combater delitos financeiros. Sem isso, não há a menor condição.

Fazer o quê? Primeiro, é preciso se preocupar em evitar esse tipo de dano. Depois, tem que haver um debate com toda a sociedade.

Frequentemente, todos se perguntam por que ainda não foi feita a reforma política, a chamada mãe de todas as reformas, para conter o descrédito e a desmoralização constante e crescente.

Enquanto ela não vem, o financiamento de campanhas eleitorais, por exemplo, chega a ser público e também privado, mas nunca aberto. Permanece encoberto sob o manto da vergonha. Aí, o mal ganha o nome de corrupção, caixa dois, e contamina ora o setor público, outra vez, o privado, muitas vezes os dois simultaneamente.

Há uma relação perversa e sadomasoquista que, vez ou outra, adoece o país. Conhecemos de sobra nossos problemas, desde os primeiros sintomas até os casos mais agudos, bem como o remédio para esses males. Para minimizar a necessidade de cura, banalizamos a moléstia, sem perceber que ela chegou a um estado de epidemia antiética e que não temos à mão as vacinas necessárias para evitar o mal que nos assola nem sua reincidência.

Publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo em 04/05/2012.

07 maio 2012

O ALIENISTA EM DIREITO&LITERATURA


Trata-se de um programa de televisão apresentado pelo procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e professor da Unisinos Lênio Streck, onde ele discute, com convidados, uma obra literária e seu diálogo com o Direito.

Abaixo, a reprodução do programa abordando a obra O Alienista, de Machado de Assis, com a participação no debate dProf. Álvaro Oxley da Rocha, Doutor em Direito, do Programa de Pós-Graduação da Unisinos e da Prof. Maria do Carmo Campos do Programa de Pós-Graduação em Letras da Uniitter.

Vale a pena assistir.



Direito e Literatura - O Alienista from Unisinos on Vimeo.