O blog publica às
sextas-feiras decisões da Primeira Turma do Colegiado Recursal dos Juizados
Especiais de Vitória, no biênio 2004/2006, período em que tive a honra de
integrar aquele dinâmico sodalício. Não há compromisso de publicação da
integralidade dos julgados nem com a identificação das partes, vez que
interessa apenas revelar alguns temas interessantes que são debatidos no
cotidiano dos Juizados Especiais, os quais inegavelmente deram uma nova
dinâmica ao judiciário brasileiro. E de tal sorte que cada vez mais são
ampliadas suas competências. Pelo andar da carruagem, em breve o que era
especial passará a ser comum, o que faz alguns preverem em futuro próximo o
sepultamento das varas cíveis comuns, onde ou se consegue um provimento
cautelar ou antecipatório ou não se vê resultado concreto em pelo menos longos
anos de litígio.
Hoje o caso refere-se ao cancelamento de viagem aérea, como segue:
RECURSO INOMINADO Nº
6.838/05
ACÓRDÃO
EMENTA: RECURSO INOMINADO. TRANSPORTE AÉREO.
RESCISÃO DE CONTRATO. RETENÇÃO DE VALOR COM BASE EM PORTARIA DO DAC. ILEGALIDADE.
INCIDÊNCIA DE NORMA EXPRESSA CODIFICADA. PREPONDERÂNCIA DO CÓDIGO CIVIL.
1.- A COMPANHIA DE AVIAÇÃO É CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO DE TRANSPORTE AÉREO E COMO TAL APLICAM-SE-LHE AS DISPOSIÇÕES DO
CÓDIGO BRASILEIRO DE AERONÁUTICA, CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E CÓDIGO
CIVIL.
2.- EM CASO DE RESCISÃO DE CONTRATO DE TRANSPORTE DE
PASSAGEIROS, COM PRAZO SUFICIENTE PARA RENEGOCIAÇÃO DAS PASSAGENS, DEVE A
EMPRESA AÉREA PROMOVER A RESTITUIÇÃO DO VALOR PAGO, PERMITINDO-SE A RETENÇÃO
ATÉ O PERCENTUAL DE 5% (CINCO POR CENTO) DO VALOR DA PASSAGEM NOS TERMOS DO
ARTIGO 740,§ 3º, DO CÓDIGO CIVIL, QUE PREVALECE SOBRE PORTARIA DO DAC,
CONSOANTE PRINCÍPIO DA HIERARQUIA DAS NORMAS.
3.- NÃO SE TRATANDO DE COBRANÇA DE QUANTIA INDEVIDA DO
CONSUMIDOR, MAS DE RESTITUIÇÃO EM PERCENTUAL INFERIOR AO QUE PREVISTO EM LEI
POR EQUIVOCADA INTERPRETAÇÃO DE NORMAS LEGAIS, DESCABIDA A APLICAÇÃO DA
PENALIDADE PREVISTA NO ARTIGO 42 DO CDC.
4.- RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos, ACORDAM os
Juízes da Primeira Turma Recursal do Colegiado Recursal dos Juizados Especiais,
à unanimidade, conhecer do recurso para dar-lhe parcial provimento, nos termos
do voto do Relator, que deste passa a fazer parte integrante.
Vitória, ES, de setembro
de 2005.
R E L A T Ó R I O
Os autores ajuizaram Ação de
Repetição de Indébito c/c restituição em dobro em face de empresa de TRANSPORTES
AÉREOS S/A, alegando que pactuaram com a requerida contrato de transporte de
pessoas, tendo reservado e adquirido os bilhetes B6K1AH, Y2BMAE e A4PYAC, pela
quantia de R$ 1.152,00, R$ 1.133,00 e R$ 1.152,00, respectivamente, mais a taxa
de embarque no valor de R$ 16,35, referentes às passagens de ida (5.2.05) e
volta (9.2.05) no trajeto Vitória/Salvador. Alegaram, ainda, que por motivos
alheios a vontade dos mesmos, cancelaram o contrato em meados de novembro de
2004, tendo a requerida aplicado a cláusula contratual concernente a reembolso,
deduzindo como taxa administrativa a percentagem de 20% (vinte por cento) do
valor da passagem, restituindo integramente apenas a taxa de embarque. Assim,
requereram a declaração de nulidade da referida cláusula, com base nas
disposições do Código Civil, bem como a restituição em dobro.
A r. sentença de fls. 118/120
julgou procedente o pedido do autor, declarando a nulidade da cláusula de
reembolso disposta no contrato de transporte de passageiros em que estipula
como taxa administrativa o percentual de 20% (vinte por cento) do valor pago pela passagem, para aplicar o
percentual de 5% (cinco por cento), nos termos do art. 740,§3º,do Código Civil
de 2002 e determinando9 a restituição dos valores pagos indevidamente em dobro,
nos termos do art. 42, parágrafo único da lei 8078/90.
Inconformada, a companhia
aérea interpôs recurso inominado a fls. 122/132, alegando prevalência das
normas previstas no DAC, vez que o CC prevê apenas multa compensatória e no
caso do contrato cuida-se de taxa administrativa, que engloba outros títulos,
bem como o não cabimento da devolução em dobro, pleiteando o provimento do
recurso para reformar integralmente a sentença ou que a restituição não se dê
em duplicidade.
Contra-razões a fls. 138/145
rebatendo os argumentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
É o relatório.
V O T O
Verificando que foram
atendidos os pressupostos de admissibilidade, sobremodo diante da certidão de
fls. 138, conheço do recurso.
A recorrente é concessionária
de serviço público de transporte aéreo, aplicando-se-lhe as normas do Código
Brasileiro de Aeronáutica, do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil,
como ela própria reconhece em seu recurso.
Em caso de antinomia entre o
CBA e o CDC, preponderam as regras deste último, consoante iterativa
jurisprudência, valendo referir por mera exemplificação e dado o seu conteúdo
didático, o seguinte julgado:
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA
CATARINA
Acórdão: Apelação Cível
2004.030123-4
Relator: Dr. Sérgio Izidoro Heil.
Data da Decisão: 04/03/2005
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO -
EXTRAVIO DE BAGAGEM - CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO CARACTERIZADO - APLICAÇÃO DO
CDC - PRAZO DECADENCIAL DE CINCO ANOS - DANO MORAL - QUANTUM FIXADO
MODERADAMENTE - RECURSO DESPROVIDO "Não se
caracteriza o cerceamento de defesa quando há nos autos elementos suficientes à
formação do convencimento do juiz, permitindo-lhe o julgamento antecipado da
lide" (Embargos Infringentes n. 2000.024881-9, de Jaguaruna, rel. Des.
Sérgio Paladino). "O
Código de Defesa do Consumidor instituiu nova política de proteção ao
consumidor, tendo suas regras abrangido todas as relações de consumo. Em caso
de antinomia entre o Código Brasileiro de Aeronáutica e o CDC, prevalece este
último, porque posterior e especial, além de editado em consonância com a
Constituição Federal" (Apelação Cível n. 97.013595-5,
da Capital, rel. designado Des. Pedro Manoel Abreu).
Ademais, ocorre que o Código
de Defesa do Consumidor-CDC, aplica-se a todas as relações de consumo em
qualquer campo do direito pátrio, como assevera, com a autoridade de um de seus
autores, o eminente Professor Antônio Herman Benjamin:
"O Código de Defesa do Consumidor pertence àquela
categoria de leis denominadas ‘horizontais’, cujo campo de aplicação invade,
por assim dizer, todas as disciplinas jurídicas, do Dir. Bancário ao Dir. de
Seguros, do Dir.Imobiliário ao Dir. Aeronáutico, do Dir. Penal ao Dir.
Processual Civil. São normas que tem função, não regrar uma determinada
matéria, mas proteger sujeitos particulares, mesmo que estejam eles igualmente
abrigados sob outros regimes jurídicos. Daí o caráter "especialíssimo"
do Direito do Consumidor (...) o Dir. do Consumidor é disciplina especial em
razão do sujeito tutelado. E como é curial, prepondera o sistema protetório do
indivíduo em detretimento do regime protetório do serviço ou produto. É a fisionomia
humanista que informa todo o Direito do Welfare State." (O Transporte aéreo e o CDC, Revista Direito
do Consumidor nº26).
Porém, insiste a recorrente
na inconsistente tese de prevalência da Portaria nº 676/2000, do Departamento
de Aviação Civil – DAC, para justificar a retenção de 20% sobre o valor das
passagens aéreas vendidas aos recorridos em caso de restituição, por
cancelamento da viagem, bem como o disposto no contrato de transporte firmado
entre as partes (fls. 108/116).
Como bem assentado na r.sentença
impugnada incide na espécie o princípio da hierarquia das normas, segundo o
qual uma Portaria jamais pode prevalecer sobre disposições traçadas por uma
lei.
A Portaria do DAC, datada do
ano de 2000 cumpriu seu papel enquanto não havia disposição expressa em
contrário no antigo Código Civil de 1916. Com a publicação do novo Código Civil
de 2002, o transporte de modo geral e o de passageiros, em particular, tiveram
tratamento adequado, revogando tudo aquilo que a Portaria dispõe de modo diverso.
Assim, preponderam,
prevalecem, impõem-se a todos os transportadores, quer do ramo aeronáutico,
rodoviário, aquaviário ou marítimo seus dispositivos quanto à rescisão
contratual, “verbis”:
Art. 740. O passageiro tem direito a rescindir o contrato de
transporte antes de iniciada a viagem, sendo-lhe devida a restituição do valor
da passagem, desde que feita a comunicação ao transportador em tempo de ser
renegociada.
...
§ 3 o Nas hipóteses previstas
neste artigo, o transportador terá direito de reter até cinco por cento da
importância a ser restituída ao passageiro, a título de multa compensatória.
...
Ora, os recorridos
rescindiram o contrato cerca de três meses antes da data marcada para a viagem,
tempo mais do que suficiente para a recorrente revendê-las.
Portanto, tenho por correta,
nesta parte, a r.sentença monocrática.
Entretanto, quanto à
devolução em dobro do valor das passagens penso não se aplicar ao caso em exame
a penalidade contida no parágrafo único do artigo 42 do CDC.
Esta Turma, em várias
decisões, adotou a corrente prevalente na doutrina pátria de que somente em
caso de engano injustificável, dolo ou má fé se aplica a dobra referida no
artigo 42 do CDC.
Também sigo o entendimento de
que havendo cobrança indevida por parte do fornecedor, este só deverá devolver
o excesso em dobro se ficar demonstrado quaisquer dos três requisitos acima
referidos.
Até porque invocável, por
aplicação analógica, o verbete da Súmula 159 do STF: “COBRANÇA EXCESSIVA, MAS
DE BOA-FÉ, NÃO DÁ LUGAR ÀS SANÇÕES DO ART. 1531 DO CÓDIGO CIVIL.”
Vale lembrar que o art. 1.531
do Código Civil revogado a que se refere o enunciado da Suprema Corte tratava
de situação análoga prevendo a devolução em dobro contra aquele que demandasse
por dívida já paga.
Apesar da revogação do Código
Civil de 1916 a atualidade da discussão permanece, eis que o preceito então
corporificado no art. 1.531, encontra-se incorporado no texto do art. 940 do
Codex em vigor.
Assim sendo, se a cobrança indevida decorrer de um equívoco não atribuível à má
fé do fornecedor, não se permite a exigência da restituição em dobro.
Nesse mesmo sentido são os
ensinamentos de Arruda Alvim (ALVIM, Arruda et alli. Código do Consumidor
Comentado. 2ª edição. São Paulo: RT. 1995)
e Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin (GRINOVER, Ada Pellegrini et alli.
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do
anteprojeto. 5ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1998).
Avulta ainda considerar que
no caso dos autos sequer houve qualquer cobrança indevida, porquanto na venda
das passagens foi cobrado o valor correto, segundo a tabela de preços de
mercado da recorrente e muito menos pagamento indevido.
Apenas a restituição, em face
do cancelamento dos contratos, por desistência da viagem - por parte dos
recorridos - é que a devolução se deu em dissonância com o disposto no Código
Civil e isso não se configura em má fé ou dolo, mas equivocada interpretação
das normas legais existentes por parte da recorrente.
Com fundamento nessas
considerações, dou parcial provimento ao recurso, apenas para excluir a dobra
do valor da restituição determinada na sentença, que, no mais, fica mantida por
seus jurídicos fundamentos.
Sem imposição de ônus
sucumbenciais, na inteligência do disposto no artigo 55 da LJE.
É como voto.