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31 maio 2011

O CAMPEÃO BRASILEIRO DE TROTES CONTRA A POLÍCIA



Archimedes Marques
Delegado de Policia no Estado de Sergipe. Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Segurança Pública pela UFS

A Polícia Militar que trabalha de forma ostensiva e busca a preservação da ordem pública, atua com rondas pelas cidades, abordagens, blitz e ainda com atendimentos de ocorrências via 190. Em média, 70% das ocorrências são via denuncias, mas nem sempre elas são verdadeiras, são os chamados trotes, que além de prover perda de tempo aos policiais e prejuízo ao erário público, pode deixar de salvar vidas ou de se prender perigosos bandidos.

Um trote pode ocupar de 1 a 3 minutos do atendente e se uma viatura for encaminhada a essa ocorrência inexistente, serão perdidos entre 10 e 20 minutos. Esse tempo é precioso para quem realmente está precisando da ajuda policial.

O problema do trote contra a Polícia que também fora tratado no programa televisivo FANTÁSTICO da Rede Globo, em 22//04/2011, mostrou essa situação criminosa em vários estados do nosso país com índices superiores a 30% das ligações ao 190 e destacou o maior passador de trotes do Brasil, o campeão em trotes contra a Polícia, um sergipano.

Tal  caso inusitado refere-se ao cidadão Jose Uilson dos Santos, cujo Inquérito Policial estava sob a minha responsabilidade, mas já fora encaminhado à Justiça. Consta da documentação acostada aos autos que o suspeito teria efetuado 206.449 ligações para o 190 da PM, no período aproximado de um ano. É bem verdade que tal número exorbitante, apesar de ser oficial e fornecido pelo CIOSP não é de todo composto de trote, vez que, em boa percentagem, os atendentes aos reconhecerem a voz do criminoso, desligavam o telefone sem lhes dar atenção, mas, contudo tais ligações eram contabilizadas como sendo trotes. Assim, com certeza, esse número pode ser abatido em  mais de 60% para ser mais exato, o que não deixa de ser um recorde de trotes efetuado por uma só pessoa em citado tempo.
A sua detenção somente ocorreu no dia em que o suspeito deixou de usar o telefone celular para ligar de um aparelho público e, ao efetuar 22 ligações para o 190 fora rastreado, localizado e preso em flagrante delito pela Polícia Militar, em 03 de março de 2011.

Depois da sua prisão e soltura, ocorridos no mesmo dia, em entendimento e decisão do Delegado plantonista, em virtude de ser o crime tipificado como de menor potencial ofensivo, o suspeito ficou alguns dias sem dar um trote sequer. Entretanto, a partir de 25 de março passado, voltou a delinqüir no mesmo crime, desta feita em menor intensidade, ligando de aparelhos de telefonia celular pré-paga ou de telefones públicos diversos.
O delinquente, quando detido, confessou e confirmou a sua autoria delitiva, inclusive na imprensa, discorrendo que começou a passar trotes para a Polícia a partir de março de 2010, a título de brincadeira e que sentia prazer em ouvir os atendentes do CIOSP sempre o alertar para o problema que TROTE ERA CRIME. Alegou que o seu objetivo principal com os milhares de trotes efetuados era fazer o maior número de ligações possíveis para mostrar aos seus colegas que poderia atingir o recorde de 80.000 telefonemas falsos, recorde esse, que certamente fora atingido e até ultrapassado, levando-se em conta os 40% das 206.449 ligações como sendo efetivamente consideradas trotes, conforme expliquei anteriormente.

Assim, o citado cidadão responde pelo crime capitulado no artigo 340 do Código Penal que trata, especificamente, da comunicação que é falsamente levada ao conhecimento da autoridade que seria competente para apurar o delito ou a contravenção penal se fossem verdadeiros, cuja pena ao seu transgressor é de detenção de 1 a 6 meses, ou multa.
Objetiva o tipo penal, manter o bom andamento da administração da justiça, no sentido de garantir-lhe seja suas diligências desenvolvidas somente no que realmente for necessário, asseverando a eficiência dos trabalhos e mantendo o prestígio relativo aos serviços prestados, não perdendo tempo com investigações ou diligencias inúteis em função de fatos irreais. 

É de fácil entendimento que o passador de trotes também praticou o crime continuado capitulado no artigo 71 do Código Penal o que lhe dá um aumento de pena de um sexto a dois terços, vez que, configura-se tal conduta, quando o agente pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, mediante ação ou omissão, animado pelas condições de tempo, espaço, circunstâncias, modos de execução, que o estimulam a reiterar a mesma ilicitude, de maneira a constituir todas elas um só conjunto delitivo. No caso em tela o suspeito praticou milhares de crimes da mesma espécie comprovando o entendimento do legislador.

Da lição do esdrúxulo sergipano campeão de trotes que trás, acima de tudo, grave prejuízo para a própria sociedade, resta comprovada, que campanhas educativas e preventivas no sentido de evitar esse crime contra a administração da Justiça, devem ser constantes em todo o Brasil, pois além de tudo, demonstrou o delinquente com sua reprovável ação, não ter consideração alguma com a força pública ou leis do nosso país, mas total desprezo.

Artigo enviado pelo Autor.

30 maio 2011

DESEMBARGADOR DO TJMG PAGA PENSÃO ALIMENTÍCIA COM CARGO PÚBLICO COMISSIONADO À EX-MULHER

O Sindicado dos Servidores da Justiça de Minas Gerais-SINJUS/MG acionou o Conselho Nacional de Justiça denunciando suposto caso de nepotismo envolvendo o desembargador Elpídio Donizetti Nunes do TJMG.

Instaurado procedimento administrativo disciplinar-(PCA No. 0006968-27.2010.2.00.0000), ficou constatado haver sido convencionado em Ação de Separação Judicial, a nomeação da  ex-mulher Leila Nunes, servidora do TJES, para exercer cargo comissionado no valor de R$9.200,00, ficando assim dito desembargador dispensado de pagar pensão alimentícia.
Esse inusitado acordo contou com parecer favorável do Ministério Público e foi homologado judicialmente pela juíza Adriana Rabelo da 2ª. Vara Cível de Nova Lima.
O CNJ considerou os fatos graves e caracterizadores de nepotismo explícito, e determinou  ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) a exoneração da servidora Leila Donizetti Freitas Santos Nunes do cargo de provimento em comissão de assessor judiciário do gabinete da 18ª Câmara Cível.
O CNJ determinou também que sejam remetidas cópias dos autos à Corregedoria Nacional de Justiça para as providências disciplinares cabíveis em relação ao desembargador e à servidora. Outras cópias serão remetidas ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para que, caso entendam como relevante, apurem as responsabilidades das condutas praticadas pelos seus membros durante o episódio.
O Conselho igualmente oficiou ao Ministério Público mineiro o resultado do julgamento para que seja apurada a prática de atos de improbidade administrativa e crimes contra a administração pública nos fatos narrados no procedimento.
Conforme o voto do relator do PCA, conselheiro Jefferson Kravchychyn, proferido em sessão realizada em 24/05 -  que foi acompanhado pela unanimidade dos conselheiros - o reconhecimento oficial de tais condicionantes revela inconteste violação aos princípios basilares da administração pública, com destaque para a moralidade e a impessoalidade. O conselheiro Kravchychyn ainda destacou: “a atuação do desembargador que entrelaça sua vida particular com sua posição como membro do Tribunal de Justiça mineiro, ofende frontalmente a Lei Orgânica da Magistratura Nacional” (Loman).
Ao UOL/Notícias disse o Simdicato denunciante:
“Em novembro do ano passado, nós pedimos para apurar porque observamos que o sobrenome dela era idêntico ao do desembargador. O CNJ apurou, para surpresa de todos, que no termo de separação existia a cláusula que o desobrigava de pagar pensão, enquanto a ex-esposa permanecesse no cargo comissionado”, afirmou Robert Wagner França, presidente do Sinjus ao UOL/notícias.
E o desembargador:
Ele negou as acusações e declarou existir um recibo, assinado pela ex-esposa, no qual ele afirma ter quitado pendências financeiras que tinha com a ex-mulher antes de indicá-la para o gabinete e nesse recibo consta a sua desobrigação de ressarcir a ex-mulher em caso de perda da função comissionada.
Informações do CNJ e UOL.
Nota do blog:
Parece que o senador Renan Calheiros, que pagava pensão alimentícia à ex-amante com dinheiro de empreiteira fez escola e mais refinada. Agora com dinheiro público.
No Brasil, depois de Lula e do PT e seus aliados, fica cada vez mais difícil saber discernir o que é público e o que é privado.
A ética e a moral dos homens públicos brasileiros (sobretudo políticos) são tão higiênicas quanto pau de galinheiro, como ressalta o  Millôr Fernandes na charge abaixo.

27 maio 2011

INDENIZAÇÃO DO SEGURO DPVAT POR VEÍCULO NÃO IDENTIFICADO


O blog publica às sextas-feiras decisões da Primeira Turma do Colegiado Recursal dos Juizados Especiais de Vitória, no biênio 2004/2006, período em que tive a honra de integrar aquele dinâmico sodalício. Não há compromisso de publicação da integralidade dos julgados, até mesmo por questão de espaço, e nem com a identificação das partes, vez que interessa apenas revelar alguns temas interessantes que são debatidos no cotidiano dos Juizados Especiais, os quais inegavelmente deram uma nova dinâmica ao judiciário brasileiro. E de tal sorte que cada vez mais são ampliadas suas competências. Pelo andar da carruagem, em breve o que era especial passará a ser comum, o que faz alguns preverem em futuro próximo o sepultamento das varas cíveis comuns, onde ou se consegue um provimento cautelar ou antecipatório ou não se vê resultado concreto em pelo menos longos anos de litígio.
Hoje cuida-se de indenização do Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre, o conhecido DPVAT.
Recentemente o STJ reafirmou ser devida a indenização do seguro mesmo que o veículo causador do acidente não seja identificado nos seguintes termos: Trata-se, na origem, de ação de cobrança ajuizada em novembro de 2002 contra empresa de seguros em razão de acidente automobilístico que vitimou o filho do recorrido em maio de 1987, sendo que não foi identificado o veículo causador do acidente. Assim, a Turma, lastreada em diversos precedentes, entendeu que, em caso de acidente causado por veículo não identificado, a indenização decorrente do seguro obrigatório (DPVAT) pode ser cobrada de qualquer seguradora integrante do consórcio que opere com o referido seguro, mesmo tendo o acidente ocorrido previamente à modificação da Lei n. 6.194/1974 pela Lei n. 8.441/1992, devendo ser aplicado o art. 3º, a, da Lei n. 6.194/1974 sem qualquer limite. Quanto à correção monetária, o termo inicial de incidência é a data do sinistro coberto pelo seguro DPVAT e, no tocante aos juros de mora, devem incidir a partir da citação. Precedentes citados: AgRg nos EDcl no REsp 1.215.796-SP, DJe 15/4/2011; REsp 546.392-MG, DJ 12/9/2005; REsp 595.105-RJ, DJ 26/9/2005, e REsp 503.604-SP, DJ 29/9/2003. REsp 875.876-PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 10/5/2011. (Informativo de Jurisprudência do STJ no. 0472).
A decisão do Colegiado foi a seguinte:

RECURSO INOMINADO Nº 5.377/04      
EMENTA:   
1.-PRELIMINAR DE EXTINÇÃO DO FEITO EM RELAÇÃO AO PRIMEIRO REQUERENTE NÃO CONHECIDA, PORQUANTO MATÉRIA NÃO VENTILADA NO JUÍZO ORIGINÁRIO. 
2.- PRELIMINAR DE CARÊNCIA DE AÇÃO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR REJEITADA. DE NADA ADIANTARIA OS AUTORES REQUEREREM ADMINISTRATIVAMENTE SE A SEGURADORA NEGA PEREMPETORIAMENTE DIREITO POR ELA INVOCADO.
3.-PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE DOS AUTORES REJEITADA. OS AUTORES COMPROVARAM SEREM OS PAIS DA VÍTIMA E QUE O FILHO FALECEU EM ESTADO DE SOLTEIRO, SEM DEIXAR FILHOS OU COMPANHEIRA E NENHUMA PROVA EM CONTRÁRIO FEZ A RECORRENTE.
4.-A LEI Nº 6.194/74, QUE DISPÕE SOBRE SEGURO OBRIGATÓRIO DE DANOS PESSOAIS CAUSADOS POR VEÍCULOS AUTOMOTORES DE VIA TERRESTRE, OU POR SUA CARGA, A PESSOAS TRANSPORTADAS OU NÃO - DPVAT, FIXANDO A INDENIZAÇÃO EM SALÁRIOS MÍNIMOS PERMANECE ÍNTEGRA NO ORDENAMENTO JURÍDICO, NÃO SENDO INCOMPATÍVEL COM A LEGISLAÇÃO POSTERIOR.
5.-A VÍTIMA DE ACIDENTE DE TRÂNSITO OU SEU BENEFICIÁRIO LEGAL FAZ JUS AO RECEBIMENTO DO VALOR ESTIPULADO EM LEI, COM  OS ENCARGOS LEGAIS RESPECTIVOS.
6.-RECURSO IMPROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos, ACORDAM os Juízes da Primeira Turma Recursal do Colegiado Recursal dos Juizados Especiais de Vitória,ES, à unanimidade, rejeitar as preliminares argüidas e, quanto ao mérito, por igual votação, conhecer do recurso, mas negar provimento, nos termos do voto do Relator, que deste passa a fazer parte integrante.
Vitória, ES,       de  outubro de 2004.

R E L A T Ó R I O
SEGUROS S/A, devidamente individualizada e representada por seu ilustrado patrono, interpôs recurso às fls. 73/89, da r. sentença de fls. 69/71 que, julgando procedente o pedido deduzido na inicial, formulado por OFL e sua mulher, por seu douto advogado, denominado de Ação de Cobrança (SEGURO OBRIGATÓRIO) DPVAT, condenou-a ao pagamento da quantia de R$ 9.600,00, devidamente atualizado com juros e correção monetária.
A recorrente argüi, em sede de preliminares, a extinção do feito em relação ao primeiro requerente, carência de ação por falta de interesse de agir e ilegitimidade dos recorridos e, no mérito, aponta a necessidade de aguardar-se o encerramento do inquérito policial e impossibilidade de se vincular a indenização do DPVAT ao salário mínimo, requerendo seja julgado improcedente o pleito vestibular.
Em contra-razões de fls. 103/112, os recorridos rechaçam as preliminares, pleiteando a confirmação da sentença impugnada em todos os seus termos, condenando-se a recorrente no pagamento de custas processuais e honorários advocatícios.
É a síntese dos autos.

V O T O

Considerando presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.
PRELIMINAR DE EXTINÇÃO DO FEITO EM RELAÇÃO AO PRIMEIRO REQUERENTE
Na ata da audiência de fls. 29 consta que o primeiro requerente deixou de comparecer à audiência por motivo justificado: trata-se de pessoa portadora de insuficiência renal crônica, estando internada naquela oportunidade no Hospital Dório Silva, conforme Laudo Médico de fls. 66.
Tenho que a ausência do primeiro recorrido em nada altera a situação dos autos, vez que a a segunda recorrida encontrava-se presente e a recorrente recusou qualquer proposta de conciliação e não havia quaisquer outras provas a serem produzidas.
Ademais, a recorrente manifestou-se em audiência e nenhuma referência ou objeção formulou a respeito da ausência do primeiro recorrido.
Portanto, a matéria não foi questionada no juízo monocrático, além de ser absurda e desumana.
Não conheço da preliminar.
PRELIMINAR DE CARÊNCIA DE AÇÃO                    
A ausência de quaisquer das condições da ação, enumeradas no art. 267 do CPC, implica na carência da ação e conseqüente extinção do processo. Alega a recorrente a falta de interesse de agir por parte dos recorridos, porquanto não houve nenhuma pretensão resistida pela recorrente, vez que não houve pedido administrativo. Não há qualquer obrigatoriedade legal de que os beneficiários devam primeiramente requerer administrativamente para só depois ingressar em juízo.
Além do mais, a própria manifestação da recorrente, em não admitir o pedido deduzido judicialmente justifica o pedido formulado, na medida em que da mesma forma que resiste em juízo, muito mais resistiria administrativamente.
Evidente, o interesse de agir dos recorridos, dada a necessidade de buscar seu direito mediante a intervenção do Estado-Juiz, como forma civilizada e democrática para dirimir a controvérsia, vez que a recorrente se nega a reconhecer o direito de recebimento do valor da indenização do indenização do seguro de acidente de trânsito de que foi vítima o filho dos recorridos.
Assim sendo, rejeito a preliminar.
PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE DE PARTE DOS RECORRIDOS
Assevera a recorrente que os autores não comprovaram a qualidade de beneficiários.
Ora, segundo os documentos acostados aos autos, os autores comprovaram serem os pais da vítima, tendo o filho falecido no estado civil de solteiro, conforme certidão de óbito e documento de fls. 67.
De outra parte, nenhuma prova a recorrente fez em sentido contrário ao que afirmado pelos autores.
Rejeito, também, esta preliminar.
                                                                                   M É R I T O

A recorrente alega necessidade de aguardar o encerramento do inquérito policial para identificação do veículo causador do acidente.
Como bem lembram os recorridos, a matéria é não só pacificada como sumulada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça:
Súmula 257: A FALTA DE PAGAMENTO DO PRÊMIO DO SEGURO OBRIGATÓRIO DE DANOS PESSOAIS CAUSADOS POR VEÍCULOS AUTOMOTORES DE VIAS TERRESTRES (DPVAT) NÃO É MOTIVO PARA A RECUSA DE PAGAMENTO DA INDENIZAÇÃO.
Ora, sejam quais forem os veículos automotores causadores de acidente, estejam eles identificados ou não, estejam eles segurados ou não, cabe a indenização por qualquer empresa integrante do consórcio.
No que respeita à competência do Conselho Nacional de Seguros Privados - CNSP para baixar instruções sobre operações de seguro não há qualquer dúvida, desde que tais instruções, circulares e atos assemelhados não desbordem do que a respeito disponham as leis.
A alegada impossibilidade de se vincular a indenização de acidente de trânsito ao salário mínimo com base nas disposições do art. 1º da Lei 6.205/1974 e art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988, não encontra ressonância na interpretação conforme o sistema lógico-jurídico. A proibição diz respeito ao sistema econômico que não pode adotar tal parâmetro – vinculação ao salário mínimo – para qualquer fim.
A fixação de certa quantidade de salários mínimos nas indenizações de acidente de trânsito tem o escopo apenas de manter a correção de seus valores, não tendo o condão de provocar qualquer indexação na economia nacional. Ademais, o alcance social da norma estipuladora do valor da indenização nem de longe pode ser compreendido como incompatível com qualquer princípio constitucional. Muito pelo contrário. É norma de proteção a todos os cidadãos, diante do elevado risco que caracteriza a circulação de veículos automotores de via terrestre na sociedade moderna.
Nesse diapasão, veja-se a pacificada na jurisprudência pátria, inclusive do Colendo Superior Tribunal de Justiça, como demonstra o seguinte julgado: RESP 153209/RS; RECURSOESPECIAL-1997/0076815-5- Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR (Fonte: DJ DATA:02/02/2004 PG:00265).

Também esta Colenda Turma vem consagrando o mesmo entendimento em inúmeros e sucessivos julgados, com relatoria de todos os seus membros.

Assim sendo, tenho por correta a r.sentença hostilizada que condenou a recorrente no pagamento da importância de R$ 9.600,00 (nove mil e seiscentos reais), com os acréscimos legais.

Firme nessas considerações, nego provimento ao recurso e, em conseqüência, condeno a recorrente ao pagamento 
das custas processuais e honorários advocatícios de 20% (vinte por cento) sobre o valor da condenação, nos termos do art. 55 da LJE.

26 maio 2011

A DEFESA JUDICIAL DO CONSUMIDOR BANCÁRIO

Parte 2/2


 Andressa Jarletti Gonçalves de Oliveira 
Advogada. Professora Colaboradora na Escola Superior de Advocacia da OAB/PR. Membro das Comissões de Direito do Consumidor e Direito da Saúde da OAB-PR.

V - A Revisão dos Encargos de Inadimplência
 Com relação aos encargos de inadimplência, inúmeras foram as decisões que determinavam a impossibilidade de aplicação da comissão de permanência. Seja porque sua aplicação à taxa variável é condição potestativa (25), seja porque é inadmissível sua cumulação com outros encargos de mora, afastando sua incidência posto que mais onerosa (26).
A Súmula nº 30/STJ (27) impede a previsão cumulada da comissão de permanência com outros encargos de mora. A solução que se adotava na hipótese de indevida cumulação, era excluir tal encargo, mantendo os demais consectários da mora (correção monetária, juros de mora e multa moratória) (28).
Tais entendimentos sofreram alteração, com a edição da Súmula nº 294/STJ (29).
Além das ressalvas já apontadas quanto à inadequação da taxa média de mercado, a Súmula nº 294/STJ esbarra ainda em outras dificuldades práticas, que revelam a necessidade de revisão de tal entendimento.
Em primeiro lugar, o Banco Central do Brasil, além de não divulgar a taxa média de mercado para a comissão de permanência, sequer tem conhecimento sobre os critérios que as instituições financeiras adotam para calcular a comissão de permanência. É o que se pode verificar do voto proferido pela Ministra Nancy Andrighi no Recurso Especial nº 1.061.530/RS:
"O Banco Central do Brasil, ao responder o convite para se manifestar neste incidente de processo repetitivo, afirmou, expressamente, desconhecer os encargos que compõem a comissão de permanência:
'Não é possível saber com antecedência os encargos que a instituição financeira deverá arcar para reequilibrar sua situação líquida após o atraso no pagamento, ante a existência de inúmeras variáveis (como a disponibilidade de crédito no mercado, os custos operacionais de cada instituição financeira, sua situação patrimonial, etc.), razão pela qual a permanência no inadimplemento gera diferentes encargos em cada contrato, a depender de suas especificidade e do momento em que o atraso no pagamento ocorre.' (grifo no original)
A Federação Brasileira de Bancos - Febraban, também em resposta ao ofício de fls. 224, afirmou que os encargos moratórios (juros de mora e multa contratual) devem ser cumulados com a comissão de permanência, pleiteando a modificação da jurisprudência neste ponto.
Em seguida, foi novamente oficiado à Febraban a respeito da definição deste encargo, seu modo de cálculo e componentes, bem como sobre as taxas cobradas por alguns dos maiores bancos brasileiros. Contudo, diante das respostas, como se verificará em tópico posterior, constatou-se que cada instituição financeira calcula a comissão de permanência de maneira particular e diferenciada das demais, o que dificulta sobremaneira qualquer categorização definitiva.
(...)
A resposta aos ofícios encaminhados à Febraban revelou dados novos que não podem passar despercebidos e que merecem ser considerados na elaboração deste voto.
Os bancos, ao responderem às indagações da Febraban acerca da composição da comissão de permanência, solicitaram, por questões comerciais e concorrenciais, que esta julgadora mantivesse sigilo de suas informações, o que será respeitado.
Isto não impede, porém, que alguns desses dados sejam utilizados, de forma impessoal e genérica, na elaboração deste voto.
As enormes variações constatadas das respostas ao ofício demonstram que cada banco trata da cláusula de comissão de permanência de maneira particular e diferenciada, o que impossibilita o conhecimento pelo consumidor daquilo que está pagando, além de inviabilizar a comparação dos custos da inadimplência face aos outros bancos.
(...)
Acrescente-se, por fim, a palavra da Febraban, entidade representativa dos bancos, que, textualmente, assevera:
'Em outras palavras, é impossível apontar critérios uniformes de cálculo da comissão de permanência para todas as instituições, dado que esse cálculo se baseia em diferentes peculiaridades.' (grifei)
Como se depreende de tais informações, a incidência da cláusula de comissão de permanência, tal como ocorre nos dias atuais, viola uma série de princípios e direitos previstos no CDC.
Numa listagem meramente exemplificativa, são afrontados o princípio da transparência (art. 4º, caput); o princípio da boa-fé e equilíbrio entre os contratantes (art. 4º, III); o direito à informação adequada e clara sobre os produtos e serviços (art. 6º, III); além das regras específicas para a outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, previstas nos incisos do art. 52 do CDC (informação prévia e adequada sobre o preço do produto, o montante dos juros e os acréscimos legais).
(...)
Assim, se está diante de uma situação de total indefinição sobre os encargos que integram a comissão de permanência e de suas taxas, situação que se agrava, inclusive, pelo inusitado pedido de sigilo formulado pelos bancos. Exsurge gritante a ausência de informação transparente e precisa ao consumidor, bem como a potestatividade da sua cobrança."
A partir de tais considerações, a Ministra propôs que deve ser definitivamente excluída a cláusula de comissão de permanência, mesmo quando expressamente pactuada.
O entendimento exposto no brilhante voto da ilustre Ministra Nancy Andrighi não chegou a ser julgado pelo colegiado, porque o recurso especial não foi admitido como repetitivo, quanto à comissão de permanência. Não obstante, a fundamentação apresentada em tal voto revela ser imprescindível o afastamento da comissão de permanência - e consequentemente a revisão da Súmula nº 294/STJ - eis que, a ausência de critérios claros, quanto à apuração de referido encargo, é incompatível com os princípios norteadores dos contratos de consumo.
Além disso, ainda que se admitisse a legalidade da comissão de permanência, também merece revisão o entendimento atual do STJ, no sentido de manter a aplicação da comissão de permanência, mesmo quando o contrato prevê outros encargos de mora (30).
A dicção da Súmula nº 294/STJ determina ser lícita a cláusula contratual que estipule a comissão de permanência pela taxa média de mercado. Ou seja, se o contrato previsse a incidência isolada de tal encargo, na inadimplência, a condição contratual seria válida.
Contudo, quando a cláusula contratual estipula a incidência da comissão de permanência cumulada com os demais encargos de mora, há inexorável ofensa à Súmula nº 30/STJ. Se a condição contratual prevê de forma cumulativa os encargos que não podem ser aplicados concomitantemente, é evidente que a estipulação deve ser revista.
Neste contexto, a adequação da cláusula permite duas interpretações distintas: manter apenas a comissão de permanência, ou preservar os outros encargos de mora. Pela aplicação da interpretação mais favorável ao consumidor, prevista no art. 47, CDC, a solução adequada é a que resultar menor onerosidade ao contrato. Considerando as altas taxas em que a comissão de permanência tem sido aplicada (5% a 25% ao mês), é evidente que tal encargo é que deve ser afastado.
Portanto, a aplicação da comissão de permanência nos contratos bancários apresenta-se incompatível com os ditames do CDC. Quer por violar a boa-fé objetiva, ante a incerteza quanto à forma de sua apuração, quer por desrespeitar o equilíbrio do contrato, promovendo o crescimento desmesurado da dívida na inadimplência.
 VI - A Vedação à Capitalização de Juros
 Esta mesma ofensa ao princípio da equidade também deve ser observada na análise sobre a capitalização de juros.
Pela aplicação da Súmula nº 121/STF, a vedação à capitalização de juros foi afirmada em inúmeros precedentes, mesmo quando contratada expressamente - excetuando-se as hipóteses em que há autorização legal (31).
Contudo, a Corte Superior, dentre outros tribunais, tem admitido como legítimo o anatocismo, quando pactuado nos contratos firmados após a edição da Medida Provisória nº 2.170-36/01 e sob a forma de cédula de crédito bancário, instituída pela Lei nº 10.931/04.
Isto mesmo a despeito dos nefastos efeitos e notório desequilíbrio que tal prática implica na evolução dos contratos, colocando o consumidor em desvantagem exagerada. O crescimento de dívidas em progressão geométrica é incompatível com a noção de equidade e proporcionalidade das obrigações contratuais, estabelecida no Código de Defesa do Consumidor.
Além disso, mesmo nas hipóteses em que a capitalização está expressamente pactuada, não há como se presumir que efetivamente reflete a vontade do consumidor. Primeiro, porque os contratos firmados com as instituições financeiras são instrumentos típicos de adesão, em que o consumidor, vulnerável, não participa da formação do pacto (art. 4º, I, CDC).
Segundo, porque os arts. 6º, III, e 52, do CDC estabelecem que é obrigação do fornecedor informar ao consumidor sobre todos os custos do crédito ofertado. E, o art. 46 do mesmo Código preconiza a proteção do consumidor, contra condições contratuais das quais não tenha compreensão total de seu sentido e alcance. Ora, somente se tivesse conhecimento específico sobre conceitos e cálculos de matemática financeira é que o consumidor poderia compreender, com clareza, o impacto que a expressão "capitalização" implica para a evolução do contrato e o preço total a ser pago.
Contudo, com exceção a alguns tribunais infraconstitucionais, que reconhecem a inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 2.170-36/01 (32), a capitalização de juros tem sido admitida nos contratos bancários, em periodicidade inferior à anual. Mesmo diante da vedação expressa da Súmula nº 121/STF, não revogada, bem como do início do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.316, que já conta com quatro pronunciamentos favoráveis ao reconhecimento da inconstitucionalidade desta norma.
A aplicação pura e simples da Medida Provisória nº 2.170-36/01, bem como da Lei nº 10.931/04, como autorizadores para a capitalização de juros mensal e até diária, ignora a ingerência do verdadeiro poder político privado (33) que as instituições financeiras exercem em nosso país.
Neste contexto, revela-se imprescindível aos julgadores, antes de aplicarem a norma como exegetas, proceder a uma reflexão sobre a legitimidade formal e material de algumas normas, que surgem como remédios para burlar a aplicação de entendimentos sumulados - como a vedação à capitalização, mesmo que contratada (Súmula nº 121/STF), e a impossibilidade de adotar o contrato de abertura de crédito em conta corrente como título executivo extrajudicial (Súmula nº 233/STJ), o que foi autorizado no art. 28 da Lei nº 10.931/04.
Esta situação revela ser necessária a prevalência dos comandos do Código de Defesa do Consumidor sobre as legislações apontadas, como forma de evitar abusos concretos (34).
Entretanto, a aplicação do CDC tem sido cada vez mais mitigada - para não dizer sepultada - nas revisões de contratos bancários. Principalmente em razão do inegavelmente poderoso lobby das instituições financeiras, tanto na edição de normas que legitimem abusos, quanto na construção de entendimentos jurisprudenciais que dificultem a defesa do consumidor.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 381 (35), pela qual vedou-se ao juiz conhecer de ofício das cláusulas nulas em contratos bancários. O comando de tal súmula é nitidamente contraditório à redação do art. 51, do CDC, que estabelece de forma clara a nulidade absoluta das cláusulas que se enquadrem nas hipóteses ali previstas (dentre outras).
Este entendimento também não observa a realidade prática de que o consumidor raramente tem acesso à mesma estrutura de defesa dos bancos (grandes bancas de advocacia). A proteção contra as cláusulas abusivas tratadas no art. 51, CDC, nulas de pleno direito e por isso cognoscíveis de ofício, é um mecanismo pelo qual o juízo poderia, de certa forma, igualar este desequilíbrio de condições de defesa.
Curioso é que a súmula, além de ilícita - por contrariar expressamente o dispositivo legal - foi moldada exclusivamente para os contratos bancários, não sendo aplicável aos demais contratos de consumo.
 VII - Conclusões
 A partir destas considerações, a defesa judicial do consumidor bancário revela-se como um grande desafio que reclama a construção de novos paradigmas. Para tanto, não se pode olvidar que as discussões sobre a aplicação do CDC aos contratos bancários não podem se furtar dos princípios constitucionais que estabeleceram a previsão de defesa do consumidor.
Com o julgamento da ADIn 2.591/DF, o STF reafirmou não apenas a submissão dos contratos bancários aos comandos do CDC, mas também que a proteção do consumidor "traduz prerrogativa fundamental do cidadão - qualifica-se como valor constitucional inerente à própria conceptualização do Estado Democrático e Social de Direito, razão pela qual incumbe, a toda a coletividade - e ao Poder Judiciário, em particular - extrair, dos direitos assegurados ao consumidor, a sua máxima eficácia" (36).
A efetividade da defesa judicial do consumidor bancário, muito mais do que afirmar a prevalência do Código de Defesa do Consumidor e a proteção contra inúmeros abusos concretos, é necessária para garantir a própria existência do Estado de Bem-Estar Social, o respeito à Carta Magna e a possibilidade de construção de uma sociedade mais justa.
NOTAS DA AUTORA:
26 TJRS, 14ª. Câmara Cível, Ap. Cível no. 70.017.882.440, Rel. Des. Durval Braulio Marques.
27 Súmula no. 30/STJ: “A Comissão de permanência e a correção monetária são inacumuláveis”.
28 STJ, AGREG 920735/RS, Aldir Passarinho, 06.08.07; AGRER 849.442/RS, Hélio Quaglia Barbosa, 04.06.07.29 Súmula no. 294/STJ: “Não é potestativa a cláusula contratual que prevê a comissão de permanência, calculada pela taxa média de mercado apurada pelo Banco Central do Brasil, limitada à taxa do contrato”.
30 STJ, AgRg no REsp 1.020.737/RS, j. 24.06.08; REsp 821.357/RS, j. 23.08.07.
31 Nas cédulas de crédito rural, comercial e industrial, admite-se a capitalização na periodicidade semestral.
32 Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, incidente de inconstitucionalidade na AC no. 2001.71.00.004856-0; TJSP, 23ª. Câmara de Direito Privado, Rel. Rizzato Nunes, Apelação no. 7.281.994.600, j. 01.07.09; Corte Especial extinto TAPR, incidente de Arguição de Inconstitucionalidade no. 579.047-0/01, j. 05.02.10.
33 Expressão utilizada por Jan Ramon Capella, no livro Os cidadãos servos.
34 Neste sentido: TJDF, 2ª. T. Cível, Apelação Cível no. 20080110065212 APC, Rel. Des. Waldir Leôncio C. Lopes Júnior, j. 09.09.09.
35 Súmula no. 381: “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”.
36 Trecho do voto do ministro Celso de Mello.
Referências Bibliográficas
CAPELLA, Juan Ramon. Os cidadãos servos. Porto Alegre: SAFE, 1998.
DONNINI, Rogério Ferraz. A revisão dos contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1999.
EFING, Antônio Carlos. Contratos e procedimentos bancários à luz do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 1999.
LISBOA, Roberto Senise. Contornos atuais da teoria dos contratos. Coordenador: Carlos Alberto Bittar. São Paulo: RT, 1993.
LUCCA, Newton De. A proteção contratual no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor 5:79. São Paulo: RT, jan./mar. 1993.
NERY Jr., Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992.
SANDENBERG, Rubens. Spread bancário: uma contribuição para o debate. Revista Contábil & Empresarial Fiscolegis, 27 maio 2009.
 Artigo publicado originalmente na Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor nº 34 - Ago/Set de 2010 e reproduzido no CD Magister 37, fev/mar/2001, de onde foi extraído.


25 maio 2011

A DEFESA JUDICIAL DO CONSUMIDOR BANCÁRIO


Parte 1/2

Andressa Jarletti Gonçalves de Oliveira 
Advogada. Professora Colaboradora na Escola Superior de Advocacia da OAB/PR. Membro das Comissões de Direito do Consumidor e Direito da Saúde da OAB-PR.

RESUMO: A revisão de contratos bancários é tema recorrente de demandas judiciais, fundamentadas principalmente nas proteções ditadas pelo Código de Defesa do Consumidor. Os questionamentos centrais dos consumidores recaem sobre a capitalização de juros e os altos encargos, remuneratórios e moratórios, praticados pelas instituições financeiras. Ao longo de duas décadas de aplicação do CDC, os Tribunais firmaram e reformularam vários entendimentos, aplicáveis aos contratos de consumo bancário. A análise crítica da evolução da jurisprudência revela a necessidade de revisão de entendimentos hoje consolidados, bem como da reconstrução da defesa judicial do consumidor bancário.

PALAVRAS-CHAVE: Defesa do Consumidor. Contratos Bancários. Revisão. Encargos Remuneratórios e Moratórios. Capitalização. Jurisprudência.

 I – Introdução

Hoje é praticamente impossível viver sem utilizar algum produto ou crédito bancário. Nesta utilização, muitas vezes o consumidor opta por caminhos mais onerosos para obter recursos, sem ter compreensão exata dos encargos praticados e seus respectivos efeitos na evolução dos contratos.

A grande maioria dos encargos são instituídos unilateralmente pelas instituições financeiras. Em razão das taxas altas e forma como são aplicados (capitalizados), podem promover o crescimento da dívida em progressão geométrica. Não raro, o consumidor se depara com um endividamento em valores excessivos e que não tem condições de pagar.
A partir da década de 90, o Poder Judiciário passou a receber um volume crescente de pedidos revisionais de contratos bancários. Tanto em defesa nos processos ajuizados pelas instituições financeiras, para cobrança de dívidas e retomada de bens, quanto em demandas promovidas por seus clientes.
As discussões judiciais, invocadas pelos consumidores, têm como temas centrais a vedação à capitalização de juros e a limitação das taxas e encargos praticados pelos bancos, tanto na normalidade quanto na inadimplência.
A preocupação com limitação das taxas de juros e vedação da capitalização não é recente, tendo sido tratada pela Lei de Usura (Decreto-Lei nº 22.626/1933) e, também, na Súmula nº 121/STF (1), aprovada na sessão plenária de 13.12.63.
Contudo, a grande abertura para discutir tais questões nos contratos bancários surgiu com a edição do Código de Defesa do Consumidor.
 II - As Alterações do Código de Defesa do Consumidor

O Código de Defesa do Consumidor materializou os novos princípios estabelecidos na Constituição Federal de 1988.
Quando a Carta Cidadã instituiu - ao menos em seu texto - o advento do Estado Social, introduziu uma nova ordem jurídica, visando ao bem-estar social dos indivíduos e à funcionalização da propriedade privada. É o fenômeno que Roberto Senise Lisboa define como a "socialização do Direito, onde o homem é considerado como indivíduo em meio a sociedade que efetivamente integra, e não mais de forma isolada, como propugnado pela vertente anterior" (2).
Com a Constituição Federal de 1988, houve uma profunda mudança ideológica. Abandonou-se aquela visão individualista que norteava o ordenamento jurídico e o direito dos contratos, para se utilizar o Direito como instrumento de satisfação das necessidades coletivas.
Sob essa ótica, consagraram-se os princípios: (i) da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); (ii) da justiça e solidariedade, do desenvolvimento nacional e da justa distribuição de riquezas (art. 3º, I, II e III); (iii) da função social da propriedade (art. 5º, XXIII); (iv) da valorização da justiça social e da dignidade do homem, disciplinando diretamente a atividade econômica (art. 170, caput, III, VII e IX).
A defesa do consumidor foi instituída na Carta Magna tanto como princípio básico do Estado Social Democrático de Direito, no art. 5º, XXXII, quanto como valor obrigatório que deve ser observado no desenvolvimento da ordem econômica (art. 170, V).
Para atender à previsão constitucional de proteção do consumidor, foi editado o Código de Defesa do Consumidor. O CDC alterou sobremaneira os princípios vigentes na concepção clássica do direito contratual, constituindo "a maior transformação nas relações contratuais desde a Revolução Industrial, embora essa evolução ainda prossiga" (3).
A partir do Código de Defesa do Consumidor, norma de ordem pública e natureza cogente, a autonomia da vontade passou a ser limitada e vigiada, para obstar abuso pela parte economicamente mais forte do contrato (o fornecedor) (4). Reconheceu-se expressamente a vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I), equiparando-se a este as demais pessoas submetidas a práticas abusivas (art. 29, CDC).
A livre manifestação de vontade deixou de ser absoluta, devendo atender os novos princípios ditados, da boa-fé objetiva e da equidade contratual (art. 4º, III). A força vinculante deve se sujeitar à validade da condição contratual (5), elencando a lei rol, não taxativo, de situações em que a cláusula contratual se apresenta abusiva (art. 51) e é nula de pleno direito.
O Código de Defesa do Consumidor firmou dois novos pilares do direito contratual, que são o supedâneo para 99% das discussões judiciais dos contratos de consumo bancário: a boa-fé objetiva e a equidade contratual.
A boa-fé foi instituída no CDC como princípio próprio, basilar e informador das relações de consumo (6), limitador da autonomia privada, principalmente com relação ao conteúdo do contrato. Passou-se a conceber o contrato em análise menos direcionada à vontade declarada, voltando-se às expectativas e aos efeitos que produz na sociedade, valorizando-se a função social do contrato de consumo (7).
Em decorrência do princípio da boa-fé e em prol do interesse social na segurança das relações jurídicas, as partes deverão atuar com lealdade e confiança recíprocas, auxiliando-se nos momentos de formação e execução do contrato(8). Obtém-se pela aplicação deste princípio um contrato limpo, sem artimanhas ou cláusulas abusivas e com redação clara (9). A transparência na contratação implica uma relação mais justa e sincera (10).
Deste princípio, deriva o direito essencial do consumidor de ser informado sobre custos e condições de aquisição ou utilização de determinado serviço e/ou produto (art. 6º, III). Nos contratos de consumo bancários, a boa-fé objetiva somente estará evidenciada quando a instituição financeira atender ao comando do art. 52 do CDC, informando prévia e discriminadamente todos os encargos e custos da utilização de determinado serviço, ou produto (crédito ou dinheiro).
A observância da boa-fé na relação contratual consumerista é imprescindível e sua falta macula o vínculo. A aplicação deste princípio, no entanto, não visa à desconstituição do vínculo contratual, mas sim à moralização do contrato (11). O princípio da boa-fé objetiva caracteriza-se, portanto, como um autorizador da revisão contratual (12), operando-se a relativização da pacta sunt servanda.
O princípio da equidade busca um equilíbrio no conteúdo das condições contratuais, de modo a se alcançar uma justiça substancial, assegurada pela razoabilidade de proporção entre as prestações dos contratantes (13). A aplicação deste princípio encontra-se desdobrada em duas premissas: (i) a nulidade absoluta das chamadas cláusulas abusivas (art. 51, CDC) e (ii) a interpretação do contrato favorável ao consumidor, parte mais fraca da relação (art. 47 do CDC).
A interpretação favorável do contrato ao consumidor permite tratar as partes consoante à noção de igualdade do ilustre Rui Barbosa, ou seja, na medida de suas desigualdades. Reconhecendo o CDC, em seu art. 4º, I, que o consumidor é a parte mais fraca da relação de consumo, a interpretação favorável consiste em uma maneira de estabelecer um equilíbrio nos poderes contratuais (14).
Já a identificação das cláusulas abusivas, ocorre segundo dois critérios distintos: o formal e o concreto ou material (15).
O primeiro decorre dos arts. 46 e 54, §§ 3º e 4º, e vincula a obrigatoriedade de cumprimento da cláusula à oportunidade de tomar conhecimento prévio do contrato. Esta noção não se esgota na simples leitura do instrumento, fazendo-se necessária a clareza para possibilitar a compreensão pelo consumidor, quanto aos sentido e alcance da disposição contratual.
O segundo, consiste na nulidade absoluta das cláusulas abusivas, enumeradas no art. 51, rol não taxativo. Destaca-se a previsão do inciso IV, de proteção quanto às cláusulas "que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade".
Além disso, o art. 6º, V, da Lei Consumerista, instituiu como direito básico do consumidor "a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas".
As limitações e proteções impostas pelo Código de Defesa do Consumidor, às condições contratuais, passaram a ser adotadas como fundamento para revisão judicial dos contratos firmados entre consumidores e instituições financeiras. Especialmente quanto aos encargos praticados nos contratos de créditos bancários.
A submissão dos contratos bancários aos comandos do Código de Defesa do Consumidor foi expressamente tratada no art. 3º, § 2º do CDC, ao definir que "serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista".
Não obstante a clareza da previsão legal, houve grande resistência das instituições financeiras em aceitarem a aplicação da norma consumerista aos contratos bancários. Principalmente porque as revisões judiciais dos contratos implicam, em muitos casos, a limitação de encargos, expurgo de capitalização de juros e até a condenação da instituição financeira na repetição do indébito.
O reconhecimento de que o Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos contratos firmados com instituições financeiras está consolidado. No Supremo Tribunal Federal, a questão foi revolvida no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.591/DF (16). E, no Superior Tribunal de Justiça, com a edição da Súmula nº 297/STJ (17).
Ao longo de quase vinte anos de aplicação do CDC, os tribunais pátrios firmaram diversos entendimentos sobre a revisão dos contratos bancários. A análise evolutiva, das constantes alterações jurisprudenciais sobre o tema, revela ser imprescindível uma releitura das orientações hoje dominantes.
 III - A Evolução da Jurisprudência sobre a Limitação dos Juros

Para melhor compreensão da questão, impende analisar as alterações da jurisprudência quanto aos três principais temas, que compõem os pedidos revisionais de contratos bancários: (i) limitação dos encargos de normalidade (juros remuneratórios); (ii) limitação aos encargos de inadimplência; e (iii) vedação à capitalização de juros.
Um dos primeiros fundamentos adotados para limitação dos juros remuneratórios foi a aplicação do teto constitucional de 12% ao ano, estabelecido no art. 192, § 3º, da CF/88, que determinava que "as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano".
O limite constitucional da taxa de juros, embora de início tenha recebido certa acolhida pelas Cortes regionais, foi rejeitado pelo Tribunais Superiores, sob o argumento de que a norma não era autoaplicável e dependia de lei complementar - embora fosse óbvio que nenhuma norma inferior poderia alterar o limite já fixado na Constituição. O § 3º do art. 192, CF/88, foi revogado pela EC 40/03.
Uma outra discussão suscitada, para limitar as taxas de juros nos contratos bancários, reside na ausência de contratação expressa das taxas de juros.
Em algumas modalidades de crédito, como nos contratos de abertura de crédito em conta corrente e cartão de crédito, a utilização efetiva do crédito - e consequentemente a cobrança dos juros - é evento incerto. As cláusulas sobre a taxa de juros são redigidas em aberto, tendo como praxe a informação de que serão praticados os encargos vigentes para aquela instituição financeira, à época da utilização do crédito.
A cláusula contratual, que autoriza ao banco aplicar a taxa que entende vigente, é nula de pleno direito, tal como preceitua o art. 51, IV, X e XIII, do CDC, eis que permite ao fornecedor o arbitramento unilateral do preço do contrato - no caso o encargo -, colocando o consumidor em desvantagem exagerada. A falta de informação prévia sobre o preço do contrato viola também o princípio da boa-fé objetiva e o direito de informação, reconhecidos nos arts. 6º, III, e 52, CDC.
Nestes casos, o que surge então é uma lacuna no contrato, para a qual a solução que foi reiteradamente adotada pelo Poder Judiciário, como exercício do dirigismo contratual, foi a limitação da taxas de juros pelos parâmetros legais (18) - 6% (seis por cento) ao ano, pelo art. 1.063 do Código Civil de 1916 e 12% (doze por cento) ao ano, pelos arts. 406 e 591 do Código Civil de 2002.
Algumas decisões isoladas chegaram a limitar as taxas de juros com base também em preceitos do Novo Código Civil, ressaltando, além da boa-fé objetiva, a função social do contrato (19).
Apesar do ímpeto inicial do Judiciário em fazer valer a proteção e os princípios ditados pelo CDC, que revolucionaram o direito dos contratos, hoje se percebe o nítido enfraquecimento do exercício do dirigismo contratual. Grande parte das decisões e entendimentos jurisprudenciais firmados recentemente, especialmente pelo Superior Tribunal de Justiça, sinalizam para uma intervenção mínima - quando não inexistente - nos contratos bancários.
Com a Súmula nº 296/STJ (20), no ano de 2004, firmou-se a tendência de relegar a limitação dos encargos bancários às leis de mercado, adotando como limite para as taxas de juros as "taxas médias de mercado estipuladas pelo Banco Central do Brasil".
Contudo, tal entendimento ignora uma série de problemas de ordem prática, que não podem deixar de ser analisados.
A primeira questão é que a taxa média de mercado somente passou a ser divulgada pelo Banco Central do Brasil a partir de 1999. E, ainda, não é para todas as modalidades de operação de crédito que o Bacen divulga tal informação. Observando essa questão, já há julgados recentes que limitam as taxas de juros em 6% ao ano (art. 1.063, CC/16), em todo o período do contrato para o qual não há divulgação sobre a taxa média de mercado (21).
Outro fator que deve ser observado é que o Banco Central não estipula a taxa média de mercado, mas apenas divulga a média dos valores cobrados pelas instituições financeiras. Ou seja, não há por parte do Bacen uma atuação efetiva, no sentido de estabelecer qualquer forma de controle e limite efetivo ao spread das instituições financeiras, nas operações firmadas com seus clientes.
Além disso, a suposição de que a livre concorrência do mercado financeiro é suficiente para regular as taxas de juros praticadas pelos bancos - reportando à ideia da mão invisível de Adam Smith - é incompatível com o cenário brasileiro.
O Brasil tem pouco mais de 150 instituições financeiras distintas, enquanto Portugal, país com extensão territorial e populacional de proporções muito mais reduzidas, dispõe de mais de 1.000 instituições bancárias. Nos Estados Unidos, são mais de 10.000 instituições financeiras distintas. Evidente que a ideia de concorrência resta prejudicada, ante uma situação concreta de oligopólio.
Considerando também que as taxas de juros praticadas no Brasil estão entre as mais altas do mundo, resta clara a necessidade de intervenção nos casos concretos. Os contratos de crédito bancário devem alcançar um fim maior, legítimo ao interesse coletivo, do que apenas a acumulação de capital pelas instituições financeiras, divulgada em noticiários sobre lucros bilionários.
Ainda, os fatores comumente apontados pelos defensores das altas taxas de juros bancários, como custos operacionais, compulsório, encargos tributários e altos índices de inadimplência (22), também devem ser vistos com ressalvas.
Os custos operacionais da atividade bancária têm sido decrescentes, em razão das inovações tecnológicas, que autorizam redução de pessoal. Recentemente também os bancos foram liberados da obrigação do compulsório. A inadimplência implica elevação dos encargos na mora (comissão de permanência), tendo os bancos meios ágeis de recuperação de prejuízos (retomadas de bens, leilões extrajudiciais, execuções com penhora on-line, credores preferenciais em falências).
Isso sem contar no fator de multiplicação bancária, nos valores percebidos com capitalização, no lucro que os bancos tiveram com o rombo do FCVS (23) e o pouco número de consumidores que reclamam em juízo. Ou seja, os abusos geram lucro considerável às instituições financeiras.
Contudo, a realidade atual da atuação do Judiciário, omitindo-se em realizar um efetivo controle sobre as taxas de juros bancárias, mostra-se afetada pelo totalitarismo da taxa de mercado. Salvo raras exceções, a maioria das decisões judiciais aceita como legítima a aplicação da taxa média de mercado, porque é assim que ocorre na prática. Ou seja, não se estabelece um juízo de valor, que questione se há ou não abusos na composição da taxa de juros, que demandem a intervenção para limitação.
Não obstante o cenário pessimista para os defensores do CDC, no ano de 2006 o Supremo Tribunal Federal abriu novos caminhos para retomar a defesa do consumidor, no julgamento da ADIn 2.591/DF.
 IV - As Consequências da ADIn 2.591/DF

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.591/DF foi ajuizada pela Consif - Confederação do Sistema Financeiro Nacional, apontando a inconstitucionalidade do art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor. O objetivo principal da ADIn era afastar a aplicação do CDC aos contratos bancários, especialmente quanto à limitação dos juros remuneratórios.
A ação foi julgada improcedente. Muito além de reafirmar a constitucionalidade da norma e sua aplicabilidade aos contratos de crédito bancário, o julgamento pelo Supremo analisou a polêmica da limitação de juros sob uma nova ótica.
No voto vencedor do Ministro Eros Grau, Relator para o acórdão, afirmou-se expressamente a necessidade de um controle efetivo, tanto pelo Banco Central do Brasil, quanto do Poder Judiciário, da abusividade e onerosidade excessiva nas altas taxas de juros praticadas pelos bancos, nos contratos de consumo firmados com os tomadores de crédito:
"Importa, no entanto, também considerarmos o descompasso existente entre a taxa de juros SELIC e as taxas efetivamente impostas pelos bancos a seus clientes. (...)
Deveras, a mera e simples comparação entre o montante da chamada taxa SELIC - que, sem nenhuma dúvida, é bastante elevada, se a considerarmos em relação à praticada em outros países - e a soma da efetivamente cobrada no plano de cada negócio individualmente considerado celebrado com os tomadores de crédito evidencia ser indispensável o efetivo controle da composição dessa soma. E não apenas nas hipóteses de relação entre banco, fornecedor de crédito, e cliente, pessoa física, senão também quando se trate de pequena ou média empresa. Pois aqui se instala - e de modo pronunciado - uma relação de dominação, em cujo polo ativo comparecem os bancos, no polo passivo, suportando-a, o devedor. Em certos casos, autênticas situações de dependência econômica."
Ou seja, o Ministro Eros Grau afirmou expressamente que a diferença entre o valor da taxa básica SELIC, fixada pelo Banco Central, e a taxa efetivamente aplicada pelos bancos em cada caso concreto, deve ser controlada. Justamente porque os contratos firmados entre particulares e banco o são em uma relação de dominação - o que, em outras palavras, nada mais é do que a vulnerabilidade do consumidor. A partir desta observação, o Ministro concluiu que:
"Daí porque tenho como indispensável a coibição de abusos praticados quando instituições financeiras acrescentam à taxa base de juros, a chamada SELIC, taxas adicionais de serviços e outros que tais. Vale dizer: tudo quanto exceda a taxa base de juros, os percentuais que a ela são adicionados e findam por compor o spread bancário, tudo isso pode e deve ser controlado pelo Banco Central e, se o caso, pelo Poder Judiciário. (...) O fato é que tudo quanto exceda o patamar da taxa SELIC é pura relação contratual. Por óbvio, a abusividade e a onerosidade excessiva na composição contratual dessa taxa, além de outras distorções, são passíveis de revisão nos termos dos preceitos aplicáveis do Código Civil - e, repito ainda, não somente em benefício do cliente pessoa física, mas também em especial das pequenas empresas, em relação às quais a dependência econômica pode estar francamente caracterizada."
Com o julgamento da ADIn 2.591/DF, a Corte Suprema reconheceu expressamente a possibilidade de controle judicial das taxas de juros bancários, sempre que a cobrança, imposta pelos bancos aos consumidores, exceder o percentual da taxa SELIC.
A fixação da SELIC pelo Banco Central não pode ser revista no caso concreto, pois é assunto de ordem macroeconômica e interesse governamental. Agora, a diferença entre a taxa de mercado imposta pelo banco, e a taxa SELIC, não só pode como deve ser analisada no caso concreto, posto que, ao contrário da fixação da SELIC, diz respeito à relação microeconômica das partes, que é puramente contratual.
E a análise da onerosidade desta diferença pode adotar como parâmetro as regras do Código Civil - ou seja, as taxas legais de 6% ao ano (art. 1.063, CC/16) e 12% ao ano (arts. 591 e 406, CC/02).
Assim, existe um claro descompasso entre a defesa do consumidor, preconizada pelo Supremo Tribunal Federal, e o posicionamento neoliberalista, adotado por Cortes infraconstitucionais, dentre as quais se destaca o Superior Tribunal de Justiça.
De um lado, o Supremo afirma expressamente a necessidade de intervenção judicial, para limitar as taxas de juros bancários, pelos preceitos aplicáveis do Código Civil. De outro, o STJ relega o controle dos juros ao mercado, justificando que as instituições financeiras não se submetem aos limites de juros fixados no Código Civil (24).
A divergência de entendimentos demonstra a necessidade de uma nova reflexão, sobre a legitimidade de alguns posicionamentos hoje vigentes no Superior Tribunal de Justiça. E não apenas quanto às taxas de juros remuneratórios, mas também quanto aos encargos de inadimplência e capitalização de juros.

NOTAS DA AUTORA:
1 Súmula no. 121/STF: “É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada”.
2 LISBOA, Roberto Senise. Contornos atuais da teoria dos contratos. Carlos Alberto Bittar (Coord.). São Paulo: RT, 1993, p.49.
3 DONNINI, Rogério Ferraz. A revisão dos contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 148-150.
4 Ibidem.
5 EFING, Antônio Carlos. Contratos e procedimentos bancários à luz do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT. 1999.
6 NERY Jr., Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1992. P. 273-274.
7 DONNINI, Rogério Ferraz. Op. cit., p. 149-150.
8 EFING, Antônio Carlos, Op. cit., p.95.
9 LUCCA, Newton De. A proteção contratual no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, 5:79, São Paulo, jan/mar.1993.
10 DONNINI, Rogério Ferraz, Op. cit., p. 150-151
11 DONNINI, Rogério Ferraz, Op. cit., p. 151.
12 EFING, Antônio Carlos. Op. cit. p. 95.
13 EFING, Antônio Carlos. Op. cit. p. 99.
14 DONNINI, Rogério Ferraz, Op. cit., p. 152.
15 EFING, Antônio Carlos. Op. cit. p. 101.
16 “ART. 3º, $ 2º, DO CDC. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ART.5º, XXXII, DA CB/88. ART. 170, V, DA CB\88. INSTITUIÇÕE FINACEIRAS. SUJEIÇÕES DELAS AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA IMPROCEDENTE. “As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor.2. “Consumidor”, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. Ação direta julgada improcedente.
17 Súmula no. 297/STJ: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”.
18 TAPR, 4ª. Câmara Cível, Ap. Cível no. 141.497-1, Rel. Fernando Wolff Bodziak, DJ 06.12.02; STJ, 4ª. T., AgRg  no REsp 619.346/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJ 06.09.04; TJPR, 16ª. Câmara Cível, Ap. Cível no. 386.253-5, Rel. Juiz Conv. Joatan Marcos de Carvalho, DJ 27.04.07.
19 TAPR, 2ª. Câmara Cível, Ap. Cível no. 204.267-5,Rel. Juiz Toshiharu Yokomizo, DJ 16.05.03.
20. Súmula no. 296/STJ: “Os juros remuneratórios, não cumuláveis com a comissão de permanência, são devidos no período de inadimplência, à taxa média de mercado estipulada pelo Banco Central do Brasil, limitada ao percentual contratado.”
21 TJSC, 1ª. Câmara de Direito Comercial, Apelação Cível no. 2004.014698-1, Rel. Des. Anselmo Cerello, j. 31.05.07; TJPR, 14ª. Câmara Cível, Embargos de Declaração Cível no. 613.018-9/02, Rel. Des. Edson Vidal Pinto, j. 12.05.10.
22 SARDENERG, Rubens. Spread bancário: uma contribuição para o debate. Revista Contável & Empresarial Fiscolegis, 27 maio 2009.
23 Conforme dados apurados pelo juízo da Vara Federal do Sistema Financeiro da Habitação de Curitiba, o rombo do FCVS é de 94 bilhões de reais (Sentença Proferida nos Autos no. 20077000015703-7).
24 Entendimento consolidado no REsp 1.061.530/RS, julgado em sede de recurso repetitivo.
25 TAPR, 5ª. Câmara Cível, Ap. Cível no. 200.887-1, Rel. Juiz Jurandyr Souza Junior, j. 30.04.03.
 
Artigo publicado originalmente na Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor nº 34 - Ago/Set de 2010 e reproduzido no CD Magister 37, fev/mar/2001, de onde foi extraído.